O amargo do luto é experimentado em uma obra sensível
Por Alvaro Goulart
“O que é, o que é?
Clara e salgada
Cabe em um olho
E pesa uma tonelada
Tem sabor de mar
Pode ser discreta
Inquilina da dor
Morada predileta”
No início de Jesus Chorou, os Racionais MC’s, falam sobre a lágrima. Mas o que essa letra tem a ver com Amargo?
O sofrimento e a tristeza são intrínsecos ao ser humano. Em Amargo, Joana (Mariana Ramires) e Matheus (Rafael Bravo), jovens de 20 anos, vêem as suas vidas mudarem completamente após a perda de uma grande amiga. Em meio às lembranças que se confundem e questionamentos que parecem não ter respostas, eles precisam aceitar essa ausência.
Com Amargo, o silêncio é verborrágico. O sofrimento dos que sobrevivem não cabe em palavras, e transborda pelo corpo fazendo do filme uma experiência sensorial. Aquele que profere o maior texto – um agente funerário – o faz de forma protocolar, elevando ainda mais o significado do silêncio.
Na ausência de diálogos, o arranjo instrumental preenchia ao fundo. Se o arco deslizava pelo violino por notas estendidas e suaves, o violão que o acompanhava era mais agressivo em seu manuseio. O piano, no toque de cada nota, um choro preso quase soluçante. Toda construção sonora evocava a confusão cinza de sentimentos.
O luto, por mais que siga uma cartilha de cinco etapas, é vivenciado de forma individual. Cada um sente esse momento à sua maneira, no seu tempo. As vezes ele nem passa, apenas adormece. Se Matheus se permite ao choro e é acalentado pelo toque da água, para Joana a revolta faz mais sentido pois o vazio deixado é caótico. É uma busca por um retorno que não é possível. O querer de um reencontro através de velhas fotografias pode mais fazer sangrar do que cicatrizar. O toque da água pra ela de nada traz conforto, pelo contrário, arde. Ainda assim, ambos estão sufocados. Seja pelo enquadramento, pelo vazio de um jardim, ou por diversos objetos em um cômodo.
Toda perda é dolorosa. Mas como sobreviver à uma perda prematura? A menção ao suicídio é feita por personagens que são tão espectadores quanto nós da tragédia alheia. No entanto, essas também sofrem seus respectivos lutos enquanto buscam por sentido no ritual da reverência pelas flores. A presença de tantos jovens em um cemitério é exclamativa. É angustioso pensar em uma potência interrompida. Mais ainda questionar os porquês, esses que jamais serão respondidos.
A experiência dos sobreviventes é apresentada em uma proposta sensível. Cada ato é poético. O luto e o suicídio de onde se origina são temáticas densas, mas que são trabalhadas de forma respeitosa e responsável. O austero preto não caberia na palheta de cores do filme e assim é substituído por uma palheta que tende ao azul. Um azul que vai além da tristeza, ele alcança do horizonte ao firmamento, é distante e ao mesmo tempo fiel. Uma cor fria que abraça com tenro acolhimento. O sal das lágrimas se dilui em um mar de sentimentos e sensações. E o amargo que inspira o título dá lugar à uma obra agridoce.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.