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Noite Passada em Soho

Noite Passada em Soho

116 minutos

Thomasin McKenzie e Anya Taylor-Joy estrelam o terror feminista dirigida por Edgar Wright, por Márcio Sallem

Alguns diretores parecem incapazes de produzir filmes abaixo da média, e Edgar Wright é um destes. Após os excelentes Todo Mundo Quase Morto, Chumbo Grosso, Scott Pilgrim contra o Mundo, Heróis de Ressaca e Em Ritmo de Fuga, Edgar comanda um terror feminista com elementos nostálgicos que viaja, com desenvoltura e fantasia, da Londres contemporânea à do final dos anos 60.

Entretanto, mesmo com o roteiro co-escrito por Krysty Wilson-Cairns (indicada ao Oscar por 1917), talvez Edgar não fosse a melhor escolha para dirigir Noite Passada em Soho. Não que o diretor não seja apto a transformar a narrativa em um amargo pesadelo, investindo pesadamente em decisões estilísticas para produzir um efeito devastador, é que a presença dele inevitavelmente provoca uma pergunta: seria um homem a pessoa adequada a comandar um conteúdo tão caro ao feminismo?

Enquanto deixo para vocês responderem a pergunta, Noite Passada em Soho conta a história de Eloise (a neozelandesa McKenzie, de Sem Rastros e Tempo), uma jovem apaixonada pelos anos 60 em razão da herança cultural da avó, com quem mora desde o suicídio de sua mãe, que aparece como um anjo da guarda que a acompanha. Ao ser aceita em uma faculdade de moda em Londres, Eloise é recepcionada por um taxista que se autodenomina “seu primeiro assediador”. Na república estudantil, é mal recebida pelas colegas.

Eloise então procura um lugar para morar a sós e se torna inquilina do apartamento de Ms. Collins (Rigg). Lá, sob as luzes néon, descobre que pode visitar os anos 60, em que se enxerga em Sadie (Taylor-Joy, de O Gambito da Rainha e A Bruxa), a versão idealizada e mais descolada de si mesma. Eloise aceita o acordo de ser a espectadora de Sadie, que tenta se firmar como vedete na concorrida cena de Londres, com a ajuda de Jack (Smith, de The Crown). Contudo, o sonho azeda quando Sadie é apresentada ao mundo do entretenimento e submetida a toda espécie de abuso.

Edgar Wright enfatiza este horror de luzes néon, taças de champanhe, homens asquerosos, ruas escuras e clubes hostis a partir da decupagem intensa, que maximiza a angústia de ser testemunha mas não poder fazer nada a respeito. Com exceção de um ou outro enquadramento infeliz, durante a exibição no palco, Edgar jamais fetichiza o sofrimento de Sadie, cuja autoconfiança é devorada por estes homens-hiena. A dor dela transborda ao mundo real e é captada pela mediunidade de Eloise, que se torna vítima por reflexo, literalmente, enquanto tenta buscar alguma justiça a Sadie.

A lógica fantástica não é questionada. Já partimos do pressuposto de que Eloise tem um dom (ou maldição), deixando a narrativa livre para explorar suas consequências. Edgar sabe o que importa e o que não importa, e não investe o tempo diegético para duvidar da confiabilidade de Eloise. A isto, encarrega o espectador. Para Edgar, é melhor brincar de espelhos, mas sem o perfeccionismo para que as atrizes mimetizem precisamente o movimento uma da outra. É a partir do espelhamento, o diretor executa um plano-sequência genial em que ambas as atrizes dançam com Jack, ao mesmo tempo.

Edgar é também um ótimo diretor de atores e substitui a exposição pela construção visual das personagens. A dança, de novo a dança, serve à finalidade de diferenciar a ingenuidade de Eloisa da sensualidade de Sadie, cujos grandes e dominadores olhos rivalizam com a aparência mais infantil da protagonista que se protege do mundo contemporâneo através da música que a transporta ao passado.

Diferentemente, o roteiro força exposições em momentos em que deveria haver somente o choque – a participação do veterano Terence Stamp vem à mente – e investe em falsas pistas e reviravoltas que estavam mais às claras do que a dupla de roteiristas presumia. Também não julguei eficiente introduzir a visita à delegacia como uma ilustração do modo como as mulheres são desacreditadas quando denunciam seus agressores. Diante da denúncia apresentada, a descrença é a reação óbvia, não o contrário. Afora isto, Edgar caminha sobre o gelo escorregadio com as revelações do terceiro ato, oferecendo subsídios para detratores que criticarão a escolha da direção e tímidos defensores, que irão encontrar justificativas.

Para complementar, é difícil entender o que Edgar Wright desejava ao colidir passado e presente. Se pretendia expor a infinidade de histórias de mulheres submetidas ao jugo de homens e que nunca receberam a justiça que lhes era devida, acertou. Entretanto, enquanto operava isto, propôs a destruição da dimensão musical tão envolvente na narrativa. A questão é que não é ateando fogo ao passado que se resolve a problemática no presente, e parece que Noite Passada em Soho só realiza a parte agradável da equação.

A de que é possível celebrar a memória pela expressão artística que eterniza pessoas e eventos no tempo. De modo otimista e até caloroso, Edgar Wright conclui a obra mais difícil que dirigiu com resultados mistos. Apesar de ser indiscutível seu talento em esboçar sequências cuja excelência está na composição milimetricamente perfeita de imagem e som, a ponto de criar pavor e agonia, desta vez a narrativa revela ranhuras não expostas noutros filmes, não por falta de empatia, somente por lhe faltar o sentimento exato que não faltaria a uma mulher diretora.

Noite Passada em Soho está em exibição nos cinemas.

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