Lin-Manuel Miranda traz as telas a adaptação do musical semiautobiográfico homônimo de Jonathan Larson e emociona ao falar sobre os sonhos e frustrações de um jovem artista.
Por Thiago Beranger.
Até os meus vinte e poucos anos o sonho da minha vida era ser músico. Nunca tive muito foco para estudar a fundo nenhum instrumento. Toco violão bem o suficiente apenas para as rodas de violão que sempre fiz com meus amigos, mas sempre me senti muito conectado com música e principalmente com a escrita. Por volta dos 8 anos comecei a escrever poesia, com 13 escrevia letras de música e montei minha primeira banda. Aos 15 fiz meu primeiro show de verdade e aos 16 gravei minha primeira música em estúdio. Meus amigos de banda são meus melhores amigos até hoje. Fizemos muita coisa legal juntos quando éramos adolescentes. Alguns seguiram carreira e continuam por aí lutando pelos seus projetos. Eu fui estudar publicidade e trabalhar com isso. Quando tinha por volta dos 20 anos, fiz minha última tentativa de banda, a Boreal. Era um duo com um dos meus amigos mais talentosos. Juntos escrevemos uma música que dizia assim:
“Dói passar dos vinte e pensar,
Pensar que o mais fácil já passou,
Passamos daí em diante a lutar,
Lutamos até mesmo por amor
Machuca perceber como era bom
Tão bom que a gente nunca nem pensou
Pensou que um dia a conta ia chegar
Pagamos tantas contas sem valor
Nem sei se a gente já sabe quem é
Nem sei mas mensurar o que ficou
Só peço que me deixe à vontade pra viver
Que me deixe à vontade pra fazer
O que me deixa à vontade, pra viver de verdade e pra ser
Não volto atrás, abro a janela pra deixar o sol entrar
Quero ser mais, viajar o mundo, encontrar o meu lugar
E ser feliz”
Vinte – Thiago Beranger e Emanuel Prado
Essa música se chamava “Vinte”. Nunca gravamos mas até hoje, já aos vinte e seis, penso nela. Ter vinte anos na época me parecia muito difícil. Lidar com as responsabilidades que estavam começando a aparecer, com o fim da adolescência e com a necessidade de escolher o que fazer da vida eram questões que me tiravam o sono. Hoje, já mais perto dos trinta do que dos vinte, percebo o quanto muitas dessas questões ainda não possuem respostas. Apesar de ter um trabalho, uma casa, de estar construindo uma família ao lado de alguém que amo, de pagarmos nossas contas, ainda é muito difícil definir quem sou e o que quero da vida. A ideia de não ter tempo para realizar meus projetos, de não conseguir conciliar aquilo que amo com aquilo que me possibilita colocar comida na mesa é o que mais me aterroriza hoje. Esse sentimento de não ser bom o suficiente, que me fez “desistir” da música, de vez em quando me pega forte quanto ao ofício de crítico de cinema. Perceber o quanto é difícil “chegar lá” através desse caminho é amedrontador.
Bom, dois parágrafos e uma música depois, enfim cheguei onde eu queria pra começar a falar sobre “tick, tick… BOOM!”, filme da Netflix lançado essa semana, dirigido por Lin-Manuel Miranda e baseado no musical semiautobiográfico de mesmo nome escrito por Jonathan Larson. O texto reflete sobre a luta do autor para criar arte e sobre o seu medo de envelhecer sem conseguir alcançar o sucesso. Jonathan, que no filme foi interpretado por Andrew Garfield, foi um dos mais promissores escritores de musicais na década de 90, principalmente por conta de “Rent”, seu trabalho de maior sucesso, que ele nem chegou a assistir em sua montagem original para a Broadway. Faleceu na manhã em que a peça estrearia, aos 35 anos.
Curiosamente, de forma parecida com a música que fiz aos vinte, a canção que abre o filme chama-se “30/90”. Nela Jonathan/Garfield canta sobre a frustração de chegar aos 30 anos com mais dúvidas do que respostas. O 90 do título faz referência ao ano em que o autor completou a idade: 1990. No final das contas, ter 30 em 90 não é assim tão diferente de estar chegando lá na década de 20 do séc. XXI. É por isso que o filme bateu muito forte em mim, dialogando diretamente com muitas das questões que estou vivendo no momento. Dá pra entender também o interesse de Lin-Manuel Miranda em adaptar a obra para o cinema ao se deparar com ela ainda muito jovem. O texto de Larson evoca essas questões comuns de uma maneira bastante tangível e a própria história de vida (e morte) do autor eleva isso a um outro nível.
Miranda interpreta esse texto para o cinema como forma de homenagem a Larson, mas seu filme ganha uma universalidade por falar sobre sonhos e sobre frustrações. O musical visto em tela segue bastante o minimalismo proposto pelo autor original, que pensou o texto como um monólogo que interpretaria acompanhado apenas de uma banda de apoio, sem a necessidade de uma produção gigantesca. Se tradicionalmente musicais são feitos para o cinema com cenários espetaculares e um grande corpo de baile acompanhando as coreografias, “tick, tick… BOOM!” nos apresenta cenários trabalhados com realismo. Ainda assim, para homenagear também o gênero, vez ou outra o artifício cinematográfico se revela, como na canção “Sunday” quando uma lanchonete se desdobra em um palco no centro de Nova York, com direito a várias participações especiais de artistas consagrados na Broadway. Fora desses raros momentos, Lin trabalha com pouco, tirando o foco do espetáculo e potencializando os dramas dos personagens através das canções.
Nesse sentido ele conta com um elenco afiado, liderado por um Andrew Garfield inspiradíssimo. O protagonista é vulnerável ao mesmo tempo que consegue transmitir a aura de gênio incompreendido necessária ao papel. Não é um personagem extremamente complexo, suas questões são abrangentes. É mais uma persona com a qual se pode facilmente identificar do que uma tentativa de retrato fidedigno do Jonathan Larson real. Garfield lida muito bem com isso, emprestando seu carisma ao papel e tomando pra si a responsabilidade de segurar o filme. Outro destaque interessante é o ator Robin de Jesus, que interpreta Michael, o melhor amigo do protagonista que serve como um contraste em relação às suas escolhas. Jonathan é o sonhador, Michael o pragmático, mas a ternura que há entre os dois faz com que o conflito de pensamentos se torne algo até bonito de ver.
É também através de Michael que se manifesta a questão que talvez esteja um pouco mais perdida no filme. A pandemia da AIDS, que teve seu auge na década de 90, aparece para relativizar o senso de urgência de Jon, que se sente sem tempo por estar chegando aos 30 anos. A partir do arco vivido por seu melhor amigo, o protagonista percebe o que é a verdadeira finitude e ressignifica o seu processo. Me parece que esse caráter utilitário que roteiro dá a um contexto central no texto original de Larson é um problema.
Contudo, quando tudo se soma no ato final e o filme se encaminha para o desfecho, toda a construção narrativa de Lin e a mensagem de Larson em seu musical ganham força. Vida e arte se misturam e complementam de forma agridoce. Chega a ser inacreditável que uma obra como “tick, tick… BOOM!” encontre na morte de seu autor/protagonista um final tão potente. Todo esse senso de urgência, toda essa luta do personagem, toda a capacidade de sonhar que Miranda universaliza em sua forma de contar a história… tudo isso encontra um anticlímax no fato de Larson ter encontrado o sucesso que tanto buscou aos trinta e poucos anos, mesma idade em que sua vida foi interrompida.
O engraçado é que para mim esse final não foi de todo frustrante. Mesmo que Larson não tenha vivido pra ver sua obra gerar frutos, esses frutos mantiveram viva a memória do autor. O desfecho é desolador, mas ao mesmo tempo me serviu como um abraço. Como um: “vai ficar tudo bem independentemente do que aconteça”. A busca pelos nossos sonhos paradoxalmente é, muitas vezes, o que nos tira o sono. Mas muito mais importante do que chegar lá, é o caminho que traçamos. É não abrir mão do que nos faz bem, sem deixar de conciliar isso com as responsabilidades da vida adulta. É buscar forças pra equilibrar todos os pratos, mas principalmente, pra saber aceitar quando eles se quebrarem. E vão se quebrar.
Ter 30 não é mais difícil do que ter 20, e provavelmente aos 40 muitos desses questionamentos ainda vão existir. É a vida. Pode até parecer papo motivacional barato, mas não é disso que “tick, tick… BOOM!” se trata. Jonathan Larson não foi um “empreendedor”, não descobriu o “segredo para o sucesso”, não ficou rico antes dos 30, nem tinha um “mindset” positivo o tempo todo. Ele foi mais um artista que sentiu, viveu, errou, cantou, acertou, escreveu coisas ruins, outras incríveis e morreu aos 35. Nada demais. Mas o fato de estarmos aqui falando sobre ele até hoje mostra que pode valer a pena correr o risco de ser aquilo que somos e nada mais.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.