Um Velho Oeste onde Blondie dá lugar a Shaft
“Meus irmãos e irmãs pretos, ninguém jamais saberá quem nós somos… até nós sabermos quem somos! Nunca seremos capazes de ir a qualquer lugar, se não soubermos onde estamos”, disse Malcolm X em sua autobiografia.
O espírito americano nasceu no Oeste. O desenvolvimento em fúria riscava a paisagem árida com suas ferrovias. o sal de suor e lágrimas temperava aquela terra. O Oeste era sinônimo de hostilidade e também de esperança. Muitos homens e mulheres arriscavam sua sorte naquela direção para cultivar um lote de terra, criar gado ou até mesmo minerar ouro. No entanto, mulheres e homens pretos também foram arrastados para aquele destino para servir como escravos nas plantações. E, após a guerra de secessão, estes já compunham boa parte da população da região. Como homens livres, trabalharam com o gado e até como pistoleiros, almejando mais do que serviços como entregadores, operários de ferrovias e limpadores de fossa.
O cowboy negro, entretanto, foi uma realidade que o cinema americano fez questão de apagar. Quando apareciam, figuravam a narrativa como membros menos importantes de grupos de bandoleiros, pessoas servis ou em situação de perigo. Tipos altivos como Ned Logan (Morgan Freeman, em Os Imperdoáveis), Django (Jamie Foxx, em Django Livre) e o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson, em Os Oito Odiados) são raros nas películas. E para contribuir com o rompimento desse padrão estabelecido ao longo da história do cinema, Jeymes Samuel oferece uma narrativa afrocentrada que ressuscita figuras reais em uma trama de vingança ficcional.
Em Vingança e Castigo, Nat Love (Jonathan Majors) busca vingança contra Rufus Buck (Idris Elba), o homem que matou seus pais, após descobrir que este foi perdoado por seus crimes. O roteiro é simples para dar espaço para referências e significados maiores. Se o gênero do faroeste não deixou pretos brilharem, que traga para este o cinema onde essas figuras prosperaram. O filme de Jeymes Samuel é rico em elementos do Blaxploitation. Indo além do protagonismo negro, todos os agentes dessa história são pessoas negras. E cada um deles é dono de suas escolhas e, portanto, de seu destino. O maniqueísmo dá lugar à ambiguidade, conferindo humanidade até ao antagonista. As personagens de Zazie Beets, Regina King e Danielle Deadwyler seriam capazes de conduzir o filme sozinhas, ou terem os seus próprios tal qual as personagens de Pam Grier. A violência gráfica é tão exclamativa quanto os movimentos de câmera e o zoom in agressivo que acompanha o ritmo da trilha sonora. Essa é um elemento vivo e que pulsa o ritmo do filme. Se o Soul era a alma do Blaxploitation, em Vingança e Castigo ele reencarna junto ao R&B, ao reggae e principalmente ao hip-hop.
A cultura do Hip-Hop se manifesta além dos aspectos sonoros. Está nas armas e dentes banhados em ouro e até no jeito notório de caminhar (C-Walk) do personagem de Idris Elba, digno de um rei: Christopher Wallace. O figurino opaco dos filmes clássicos de faroeste é substituído por cores mais saturadas. O azul e o vermelho misturados no mesmo bando rompe com a rivalidade cromática herdada dos Bloods e Crips. Afinal, mesmo havendo rixa e morte entre os personagens, ela não se dá por disputa de território.
O filme não deixa de respeitar a linguagem do faroeste. A montagem dos duelos, mesmo que corrompida em um ou outro momento, está bem consolidada. A trama de vingança por si só já remete aos clássicos. A sequência do roubo ao trem – trem de nome Boseman, vale lembrar – é incrementada com uma briga de facas e com uma denúncia providencial à covardia e ganância sob o uniforme confederado, derrubando assim monumentos com imagens em movimento. O roubo ao banco, outro elemento comum nas histórias do velho oeste, é executado com sagacidade, explode alguns estereótipos enquanto subverte outros.
Vingança e Castigo é uma experiência mais profunda do que se imagina. Apesar de um plot simples, seu roteiro e execução apresentam complexidades que exigem um olhar mais afiado da história do cinema. Samuel conseguiu extrair o melhor do faroeste e fez questão de denunciar suas problemáticas e enterrá-las de uma vez por todas. É um filme sobre conhecer sua verdadeira história e ter o domínio sobre ela. E o resultado é um fusion de estilos cinematográficos – e também musicais – que orgulharia Spike Lee.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.