Por Alvaro Goulart
“Nunca devemos esquecer que nenhum homem pode fugir de si mesmo”, disse Goethe.
O carismático, mas sem sorte, Stanton Carlisle (Bradley Cooper) se torna querido para a vidente Zeena (Toni Collette) e o seu marido mentalista Pete (David Strathairn) numa feira itinerante. Ele ganha um bilhete dourado para o sucesso usando o conhecimento adquirido com eles para ludibriar a elite rica da sociedade de Nova Iorque dos anos 1940. Com a virtuosa Molly (Rooney Mara) lealmente ao seu lado, Stanton planeja enganar um magnata perigoso com a ajuda de uma psiquiatra misteriosa que pode vir a ser sua melhor adversária.
Através de um conto de terror encorpado com uma roupagem noir, Guillermo del Toro discursa sobre a verdadeira natureza humana sem se desconectar de suas aspirações pelo sinistro e o fantástico. Com uma riqueza de detalhes minimamente pensados, somos hipnotizados pela trama de O Beco do Pesadelo enquanto acompanhamos a trajetória do personagem de Bradley Cooper em sua interpretação mais visceral.
O filme começa com Stanton Carlisle (Cooper) arrastando um corpo em uma casa que arderá em chamas enquanto o personagem inicia sua jornada. A decupagem utilizada pelo diretor já insinua que se trata de um escapismo e não uma busca: o caminhar em direção contrária ao horizonte e o vagão rumo à esquerda do quadro.
Ao chegar a um circo, se depara com um espetáculo grotesco apresentado por Clem (Willem Dafoe) envolvendo um “ser selvagem”. Em pouco tempo Carlisle está trabalhando junto aos mambembes com trabalho braçal e pequenos auxílios durante os números até se tornar uma espécie de pupilo de Pete no aprendizado das adivinhações. Nesse primeiro terço do filme nos deparamos com uma versão mais afável de Carlisle, um homem comum tentando sobreviver em um ambiente áspero e que cujas oportunidades são moldadas a partir do encanto e da farsa. Afinal de contas, todos estão desesperados para serem notados.
Del Toro resgata a nebulosidade que usara em A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno para construir o tom sombrio de O Beco do Pesadelo. Se nas obras citadas o contexto da Guerra Civil Espanhola é usado para evocar o pior da humanidade, aqui a reminiscência da Grande Depressão e a iminência de uma nova guerra tornam lúgubres aqueles tempos. O diretor também toma por inspiração os filmes noir para orquestrar sua narrativa. O preto e branco ganhou cores sem esquecer o contraste entre luz e sombras. O chiaroescuro aqui tem seu significado expandido pela paleta que contrasta verde e vermelho, azul e dourado. A fotografia, o figurino e a direção de arte trabalham em conjunto para conferir uma riqueza de camadas a seres tão ambíguos e contraditórios cuja percepção sobre eles exige ir além do bem e do mal.
O contraste entre luz e sombras se dá também no conflito de elementos que remetem ao sagrado e ao profano: Um feto de três olhos conservado em uma garrafa é batizado com o nome do último sobrevivente do dilúvio e também descendente de Caim; Pete, o mentalista com nome de apóstolo, que concede as chaves de seu truque à Carlisle; O tarô praticado por Zeena, esposa de Pete; Além de símbolos místicos espalhados pelo cenário, é constante a presença de olhos nos cenários, em especial o Olho da Providência, ou Olho de Hórus / Olho de Deus (Esse último quando estampado na venda de Carlisle é uma referência à sua vaidade).
As formas circulares, presentes em todo o filme, também merecem uma citação. Principalmente aquelas que estão ligadas a Carlisle: os espirais do túnel da “Casa da Danação”, o fundo da cadeira elétrica e até mesmo na gravata que o personagem usa. Elas remontam à essa trajetória cíclica do personagem e a sua incapacidade de se desconectar do passado. Essas mesmas formas, tal qual um ouroboros são um estigma sobre seu eterno retorno.
O circo em si pode ser notado mais do que um simples espaço. Esse microcosmo é um personagem vivo que se comunica diretamente conosco através do olhar. A atmosfera turva e lamacenta se transforma em um show de luzes e cores – algumas mais saturadas que outras conforme os ambientes são explorados. A “Casa da Danação”, por exemplo, é de um vermelho tão intenso quanto o impulso de morte das emoções e pecados que corrompem a mente humana. É como se aquela atração nos transportasse instantaneamente para o Inferno da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Aliados a esse cenário macabro e às figuras distorcidas, o emprego de ângulos zenitais nessa atração traz também um quê de O Gabinete do Dr. Caligari, de Murnau.
Se o personagem de Bradley Cooper nos provoca uma empatia suspeita (ainda mais quando Carlisle é incapaz de se olhar no espelho e encarar os próprios pecados), é Cate Blanchett que nos inquieta enquanto femme fatale da história. Sua personagem nos provoca enquanto instiga o protagonista. A Dra. Lillith – nome também da primeira femme fatale do mundo – surge desafiadora, com a imponência digna da força da natureza que ela é. Uma mulher misteriosa que invade a psiquê de seus poderosos e igualmente vulneráveis pacientes em busca de riquezas em forma de segredos e memórias. Seu consultório é um contraponto ao circo. Os corredores apertados dão lugar à uma sala ampla e rica. A arquitetura espelha o art deco já em declínio, mas que reflete a opulência massacrante da burguesia sobre o proletariado. São detalhes em portas e paredes de engrenagens que reforçam a ideia de que ali estamos vendo operar o maquinário cerebral.
Molly, por outro lado, seria a clássica donzela do cinema. A jovem virginal é até então a protegida de Bruno, o “homem forte” do circo – vivido por Ron Perlman, em sua sétima parceria com o diretor. Ao longo do filme sua jornada é intrinsicamente ligada a Carlisle. O destino da personagem de Mara se aprisiona ao do personagem de Cooper à medida que a cor do sangue tinge seu figurino. Os sentimentos de Molly por Carlisle vão se tornando mais intensos e nocivos que as correntes elétricas de seu número original. Muito me chamou a atenção a um broche de cervo em seu figurino em determinado momento da história. Tal qual uma presa fácil vivendo em um mundo de predadores ávidos e insaciáveis.
A primeira metade de O Beco do Pesadelo não é muito diferente de uma narrativa sobre o sonho americano, ainda mais em uma época onde a esperança é um sentimento em escassez. A jornada de um homem comum que encontra no circo uma oportunidade que vai além da mera sobrevivência, e sim um meio de ascender. Até porque no circo ninguém se importa com seu passado. Durante esse drama mambembe nos deparamos com figuras marginalizadas pela sociedade e que despertam do fascínio ao desprezo àqueles que se permitem olhá-los de perto. É nesse filme dentro do filme que nos permitimos sentir empatia e até mesmo torcer por Stanton Carlisle. Como dito por Zeena, ele ainda é uma visão agradável aos olhos.
Na sua segunda metade, o filme se transforma em um thriller. O truque está sendo montado enquanto a trama se desenvolve. Carlisle já não é mais o mesmo. Tão pouco aqueles ao seu redor. Sua dinâmica com Lillith é inebriante. Mais que um jogo de gato e rato, o espetáculo se converte em uma partida de xadrez onde as emoções humanas são as peças…assim como os pecados. A tensão entre um determinado grupo de personagens é acentuada em um jogo de enquadramento que os coloca em diferentes patamares. Todos desejam a coroa, e todos temem o xeque-mate. Confesso que é o trecho da obra cujo ritmo cai vertiginosamente. Contudo, percebo que tudo faz parte do truque que é contar essa história. É como se para sermos totalmente hipnotizados precisássemos de um momento de transe para enfim sermos arrebatados pela conclusão do terceiro ato. É com a pausa que as vítimas se entregam!
O Beco do Pesadelo vai além de uma história macabra, um circo sombrio ou um truque bem arquitetado. É uma leitura sobre os limites da bestialidade. É experimentar os pecados capitais na sua forma mais pura. É sobre aceitar a sua verdadeira natureza. É sobre se permitir assombrar enquanto descobre se o que está diante de nós é um homem…ou uma fera.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.