Com a utilização de dioramas e figuras de argila, o diretor cambojiano Rithy Panh revisita a crise da humanidade a partir de uma perspectiva invertida e distópica quando os animais escravizaram a humanidade e assumiram o poder. A frente, um Porco, que adquirirá braços humanos dourados, um Chimpanzé, que se afeiçoará dos humanos acorrentados e enjaulados. Não se trata de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, ou de uma iteração de O Planeta dos Macacos, mas de um ensaio crítico, redundante e desprovido de um fio condutor, uma espinha dorsal através da qual esteja estruturada a narrativa.
Rithy Panh alterna entre stop-motion dos personagens dentro do diorama com imagens de arquivo com que pretende realizar associações – em suma maioria, óbvias; noutras, incômodas. Um fragmento de Afold Hitler discursando é exibido em playback enquanto assistimos ao Porco realizar um gesto de força e opressão semelhante, o Porco é Hitler, mas este é um porco. Não existe meia verdade aí, mas uma montagem imagética nos monitores da sala de controle onde os animais confabulam e sonora, que associa os grunhidos e gunchos do Porco com a oratória alemã de Hitler.
A narrativa não é somente crítica a regimes fascistas, que repetidamente retornam à esfera do poder com seus ideias nacionalistas e eugênicos, mas apresenta um manual social 1.0, atacando o sistema econômico capitalista e liberal e como este autoriza ou ao menos fecha os olhos à opressão, à ideologia comunista trocando Hitler por Stalin, a atributo inerentes da existência humana (egoísmo, ganância, acumulação de bens em detrimento de terceiros – acentuada pela vida capitalista, mas, a bem da verdade, câncer da humanidade desde que é humanidade), a destruição da natureza e a crueldade contra os animais. Neste caso, Pahn revela sem economizar no impacto a degolação de uma vaca ou a estripação de um porco para retorcer as entranhas de quem quer que assista.
Não é o discurso político – com que concordo em 99,99% do tempo -, mas a forma como este discurso político é corporificado dentro do ensaio. Se a repetitividade dos fragmentos fílmicos é a maneira ilustrada de como a história se repete, a obviedade não é um atributo a ser elogiado. Enquanto isto, o mundo criado por Panh é estático – é um diorama, ora – dotado de movimento e ação a partir da câmera, da montagem (que desempenha o papel mais clássico na raiz do cinema) e do som, que confere o deslocamento temporal ou espacial onde não há. Um fenômeno que adoraria re-estudar noutros filmes, pois apesar de o Porco permanecer estático, seu grunhido interferiria na percepção do espectador para conferir o movimento que faltava.
Além do mais, a narração poética de Christophe Bataille não é apropriada ao audiovisual. A poesia exige dedicação de quem a lê, atenção irrestrita; no cinema, a atenção é dividida com as imagens – mais estimulantes porque dotadas de movimento. Além de a associação entre a narração e as imagens exigir um nível ainda maior de intelecção, que supera a interpretação das imagens, dificulta o ato de o espectador-ouvinte concentrar-se no discurso como todo, rememorar passagens anteriores que conferem sentido a passagem ora narrada. Não ajuda que a voz da narradora seja entediante, monótona e livre de inflexão emocional.
Everything will be OK é uma crítica social, econômica, política e ambiental óbvia que não tem um cerne – poderia ser a respeito da violência contra animais, mas esta puxa a corda para o capitalismo, e este para os sistemas políticos de exceção e assim em diante – nem propõe um meio de resolver estes problemas, senão o que emana do gesto de quem está no poder de alcançar quem está oprimido pelo poder. Até que o espectador chegue lá, em intermináveis 96 minutos, a narrativa já exauriu o desejo de participação do espectador e apenas devolveu-lhe à apatia do início.
Atualização: Rithy Pahn ganhou o Urso de Prata de extraordinária contribuição artística.
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.