Steven Soderbergh volta às telas da HBO Max para um estudo sobre o “voyerismo hithcockiano” na contemporaneidade.
Por Thiago Beranger.
Nos últimos meses temos visto os primeiros filmes “filhos” da pandemia chegando às telas. O momento gerou um verdadeiro caos no mundo inteiro, mas em especial dentro da indústria cinematográfica. Muitas produções foram interrompidas, adiadas ou canceladas. Mas, um acontecimento dessa proporção não poderia impactar só o que está por trás das câmeras. As relações, o contexto social e os hábitos mudaram, por isso, novas histórias também passaram a ser pensadas dentro desse cenário.
Steven Soderbergh é um desse cineastas que estão sempre ligados em novas tendências. O diretor, que anunciou uma aposentadoria precoce há alguns anos atrás, desistiu da ideia e já lançou alguns filmes desde o retorno. Um deles, “Distúrbio” (2018), foi rodado inteiramente utilizando-se de câmeras de Iphones. Essa escolha não foi puramente técnica, mas se incorporou perfeitamente à narrativa do filme, que tratava sobre um “stalker” que perseguia a protagonista, interpretada pela excelente Claire Foy. Soderbergh volta às telonas em 2022 com um filme que também tem muito a dizer sobre a contemporaneidade, dessa vez não através do aparato técnico utilizado em sua produção, mas sim dos seus temas e até da forma como escolhe retratá-los.
O filme conta a história de Ângela (Zoë Kravitz), que trabalha em uma empresa cujo produto mais bem-sucedido é uma assistente virtual muito parecida com a Alexa que nós conhecemos. Ela sofre de agorafobia, um transtorno psíquico que provoca, dentre outras coisas, um medo intenso de sair de casa. Esse problema está ligado a traumas vividos no passado mas se intensificou por conta da pandemia, fazendo com que Ângela trabalhe em regime de home office cumprindo a função de ouvir caso a caso problemas de comunicação entre os clientes e Kimi (a tal assistente virtual). Isso para alimentar o sistema que aperfeiçoa o algoritmo do produto. Certo dia a protagonista tem acesso a um áudio que parece ter registrado o cometimento de um crime e, ao tentar investigar, se vê no meio de uma conspiração que coloca sua vida em risco.
É inevitável, pelo menos para mim, não traçar comparações entre “Kimi: Alguém Está Escutando” e a obra de Alfred Hitchcock. Claramente Soderbergh se inspira no mestre do suspense para construir o seu filme, especialmente no célebre “Janela Indiscreta” de 1954. É como se Steven atualizasse o clássico, explorando as novas possibilidades que a tecnologia do nosso tempo oferece para que o “voyerismo” proposto por Hitchcock na década de 50 se manifeste. Se o personagem vivido por James Stewart, na época só tinha a janela de sua casa e um binóculos para se distrair enquanto se recuperava de uma fratura na perna, Ângela tem o mundo inteiro na palma da mão e na tela do seu computador. Seu trabalho é, de certa forma, ser uma “voyer”, invadindo a privacidade de centenas de usuários por dia, ouvindo os áudios gravados por aparelhos que existem na intimidade de seus lares.
As janelas continuam portanto lá presentes. O apartamento da protagonista possui uma bem grande, de onde ela observa seu namorado (que mora no apartamento da frente). A janela aqui, porém, ganha novos contornos após 2 anos vivenciando uma pandemia que teve como consequência medidas de isolamento social. As interações nesse período se deram principalmente através das duas “janelas” tão presentes no longa, a literal e a que se abre através dos nossos aparelhos eletrônicos e possibilita que estejamos conectados com o mundo. Referência boa é assim, quando não simplesmente replica o que já foi feito anteriormente, mas quando serve como ponto de partida para a adição de novos significados e discussões. O trabalho de Ângela levanta justamente um assunto atualíssimo, que é a segurança de dados e o poder que as poucas e grandes empresas de tecnologia possuem em suas mãos.
É interessante perceber também uma outra semelhança com o “Janela Indiscreta”, que tem consequências diferentes aqui justamente por conta do desenvolvimento dos meios tecnológicos empregados nesse “voyerismo”. Ambos os protagonistas, o de 54 e o de 2022, possuem os seus olhares correspondidos. A partir do momento em que eles são notados, passam a ser também alvo de observação e a ter suas vidas colocadas em risco. A diferença está na escala. Se hoje observar ficou bem mais fácil, ser observado também. Rapidamente após ser percebida, Ângela tem sua privacidade totalmente invadida. Seu e-mail, suas senhas, sua localização, tudo é facilmente encontrado por seus perseguidores. Hoje em dia esse olhar correspondido tem um impacto ainda mais profundo.
Apesar de toda a referencia a “Janela Indiscreta”, a produção ganha ares de “Intriga Internacional” (1959), outro clássico “hitchcockiano”, a partir do momento em que a protagonista enfim consegue sair de casa. Isso, por conta do jogo de gato e rato que passa a dar a tônica da narrativa. É divertido e um tanto quanto desesperador assistir a essa perseguição pelas ruas da cidade. Nesse contexto, Soderbergh consegue ilustrar visualmente de forma bastante eficiente a ansiedade da protagonista. Há um efeito de aceleração que causa imediatamente um estranhamento, além do abuso de planos holandeses que por si só já expressam essa desestruturação psicológica dos personagens e transmitem a ideia de instabilidade.
“Kimi”, portanto funciona melhor quando se percebe os seus contextos, como um fim em si mesmo é uma obra assumidamente limitada. Se é intrigante observar as referências que o diretor utiliza na construção de sua narrativa e constatar as novas cores que elas ganham quando confrontadas com a realidade atual, não há muito além disso. Os personagens e a trama não tem força própria, com exceção da presença marcante de Zoë Kravitz como a protagonista. O objetivo parece ser mesmo fazer um estudo de atualização do “voyerismo hitchcockiano” e dentro desse contexto, o filme é muito bem sucedido.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.