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Olhar de Cinema, dia 3

Olhar de Cinema, dia 3

7 Cortes de Cabelo no Congo (2022), de Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi

Não é por causa da trilogia de filmes Barbershop, mas a barbearia sempre me pareceu um espaço além da mera prestação de serviços. É de convivência, diálogo, política, e o imigrante congolês Fernando Mupapa, o Mestre Pablo, entende disso bem. Gosto de imaginar que a lógica para essa relação é consequência da vulnerabilidade pela navalha, que derruba muros e aproxima pessoas por este breve período de tempo. O suficiente para que sejamos convidados a conhecer a realidade da República Democrática do Congo a partir de quem precisou deixar o país em busca de condições melhores de vida.

Não é que faltem riquezas naturais ou oportunidades para quem mora no país, como evidencia Pablo, é que o imperialismo provocou a exploração predatória para abastecer as indústrias de bens internacionais. Pior, para manter lubrificada a engrenagem do neocolonialismo, os países americanos e europeus destruíram a fábrica da democracia da África Central, fomentaram guerras civis, colocaram ditadores-fantoche no poder. Não só exploram e destroem o Congo, também expulsam do solo os imigrantes congoleses com políticas migratórias e xenofobia. A França e a Bélgica são o alvo principal da crítica de Pablo, feita a partir de 7 capítulos, os 7 cortes do título. 

É a maneira de a direção implicar o cinema dentro da leitura da realidade: o corte, o momento de quebra na continuidade fílmica, representa também o ato de criação de sentido e absorção de conhecimento compartilhado por Pablo ou por quem divide a cadeira de seu modesto salão. O trio de diretores expande a narrativa além do espaço central, em direção ao Congo e a imagens simbólicas representativas. O pedido de desculpas do herdeiro do Rei Leopoldo II pela violência praticada pela Bélgica contra o Congo é sucedido pela propaganda turística do país, em que pessoas brancas comem e se lambuzam de chocolate característico do país. A imagem associa a violência história com o canibalismo do povo negro, remetido literalmente no corte Fantasmas, em que um homem recorda do canibalismo ruandense. 

Contudo, poderoso como registro da experiência imigrante e do desejo de regresso do homem às raízes, 7 Cortes de Cabelo no Congo beneficia-se imensamente da figura magnética que é Pablo. O personagem preenche a tela com sua personalidade expansiva. Escuta quando é para escutar, intervém quando é para intervir, enfurece-se quando recorda a injustiça contra os povos africanos e o exaurimento da paciência por séculos de opressão. Pablo explica seu modo de pensar de forma clara: está no Brasil, nacionalizado, para reaver a riqueza tomada de seu povo ao longo da história. Seu discurso é incisivo e reforçado pelo formalismo documental, cuja rigidez é enfraquecida só quando quebra o modo observador em favor do participativo, ao inquirir e questionar. Algo minúsculo em face à poderosa irresignação de quem representa muitos.

Alan (2022), de Diego e Daniel Lisboa

De 1999 a 2012, os irmãos Diego e Daniel Lisboa estiveram juntos ao lado de Alan do Rap, um homem da periferia baiana, catador de lixo, com o dom de criar rimas e poesias a partir da situação de marginalidade em que está. Esse período de tempo é suficiente para criar uma relação de amizade entre biografado e biógrafos, que transparece no documentário, cuja missão é de estabelecer a cronologia do artista, enquanto o torna exemplo para entender a relação entre a sociedade brasileira, racista, punitivista e avessa à arte da favela e o fenômeno da criminalidade e marginalização. 

Alan é aberto e receptivo à câmera, ou o documentário o revela assim a partir do corte de 92 minutos obtidos após anos de filmagens (imagino quantas horas de material não tinham os irmãos antes de chegar à versão final). Sua opinião sobre a condição em que está é expressa por meio de rimas compostas com a mesma naturalidade do ato de respirar, e não há filtros ou autopiedade. Alan sabe quando erra ao cometer um crime e ser encarcerado; sabe também que o crime é mais do que o ato de delinquir, é um fenômeno complexo fruto da negligência do Estado e da invisibilidade da camada marginalizada. Nem por isto, justifica o ato cometido. Só sabe apontar que o culpado é menos óbvio do que parece.

Sua postura transgressora o leva a invadir shows de Alpha Blondy, Racionais MC e outras bandas para encontrar a forma de expor a arte que produz, já que os produtores estão cegos a seu talento. E o papel do rap é revelado como ritmo musical de denúncia da periferia, o que deságua na forma fílmica: a fotografia é áspera e caseira; a razão de aspecto é claustrofóbica, tal como as ruelas das comunidades por onde Alan transita; os jump cuts e cortes bruscos representam uma espécie de crueza do real, a interrupção do fluxo já que a vida de Alan era também cheia de pausas. Reforça isto os fade to black, momentos de suspensão em que a tela fica escura e a imagem é negada ao espectador. 

Conscientemente incômodo, pois existe o instante em que o artista deve incomodar para alertar a sociedade sobre a condição em que tantos estão, Alan é um retrato que a história tratou de pincelar em cores de tragédia. A participação ativa dos criadores dentro da filmagem dilui, acidentalmente, o discurso de Alan do Rap, como ocorre na cena ambientada na delegacia no pedido do realizador, logo atendido pelo agente penitenciário, de soltar as algemas. É um ato que revela, sem querer, a raiz do problema contra o qual Alan se insurge, e em que agem justo aqueles que oferecem a oportunidade negada ao artista de expor a arte que produz. 

Uma Noite sem Saber Nada (2022), de Payal Kapadia

Selecionado para a Quinzena dos Diretores de 2021 e o Festival de Toronto do mesmo ano, o longa-documentário de estreia de Payal Kapadia explora a tensão entre o Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata Party – BJP), do presidente nacionalista Narendra Modi, e os alunos da Film & Television Institute of India, que entraram em greve para protestar contra as políticas discriminatórias governamentais. No meio dessa confusão, a polícia e “justiça” como fiadoras do império da violência, encarceramento e intolerância contra as manifestações pacíficas, cujo objetivo era de apenas chamar a atenção da população e conscientizá-la – o que o cinema tende a fazer nessas situações. 

O que Payal revela é contemporâneo e está sendo vivenciado de muitas maneiras por muitos países alinhados com o pensamento extremista de Modi, e há facilidade de se relacionar com a montagem que reúne, como peça jornalística, entrevistas, manifestações, registros de câmeras de vigilância – que expõem a violência policial contra estudantes desarmados. São os contornos que conferem à narrativa a cara do cinema, com a utilização de cartas escritas por estudante identificada com a letra L., encontradas dentro do armário da universidade, e que conferem um texto epistolar poético. As cartas contam uma história, com características estilísticas próprias, em contraste com as imagens documentais. 

Entretanto, Uma Noite sem Saber Nada descolore as imagens, como se tentasse conferir a estas o aspecto atemporal. Eu entendo a ideia que rege esse pensamento, pois a intolerância em razão de etnia ou de orientação religiosa não é uma invenção dessa geração que vivemos, mas sinto que empobrece a relação do espectador com as imagens justo porque as afastam do hoje, do agora. Perde-se o imediatismo que a greve dos alunos tem, em favor do estilo de ontem – até sintetizadores, típicos dos anos 80, são empregados como trilha de fundo em um momento catártico dos alunos. 

A poesia de alguns momentos, como a reflexão da diretora (ou L.) a respeito da idade da policial e que esta poderia ter sido sua colega na universidade ou a explicação do motivo pelo qual um aluno decide não responder se foi, ou não, torturado – não quero influenciar estudantes a não protestar – fica diluída em uma forma que não reforça, mas atrapalha, o que a narrativa tem a oferecer.

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