Filme de abertura do Festival de Berlim é reimaginação de clássico de Fassbinder
Karl abre as cortinas da mansão onde mora o personagem-título Peter Von Kant. A câmera em plano aberto estabelece a dimensão do imóvel e se aproxima, em um corte, para um plano médio quando as cortinas convidam o olhar do espectador para o interior daquele ambiente tóxico e abusivo em que Peter utilizará sua envergadura dentro da indústria para tentar impor e compensar suas inadequações emocionais. Diretor bem sucedido, Peter (Ménochet) é visitado por Sidonie (Adjani), cuja carreira ajudou a lançar e agora é uma estrela internacional, e que o apresenta a Amir (Gharbia), um jovem atraente, mas de passado modesto, e que Peter seduz.
É aquele comportamento que o #MeToo expôs e combateu. Com o poder que tem nas mãos, Peter convence Amir a morar no seu apartamento e promete ajudá-lo no início da carreira nos cinemas com o interesse de dividir a cama Amir. Peter não esperava que, 9 meses depois, a agora estrela Amir renasce e o abandona, deixando-o para ser devorado por dentro pelo ciúme e possessividade. Este jogo de interesses mútuos reimagina o drama As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), dirigido por Rainer Werner Fassbinder, em que a estilista interpretada por Margit Carstensen também utiliza a posição na indústria como moeda de barganha amorosa com Karin (Hanna Schygulla).
A essência da narrativa permanece a mesma, com a adaptação do gênero dos personagens e a adição do ponto de vista contemporâneo à obra passada em meados dos anos 70, e a encenação conserva a alma teatral. Com sequências bastante extensas, Peter, Sidonie, Amir, Karl e mais convidados que conheceremos no correr da narrativa, o diretor François Ozon expressam as dores, os ressentimentos e os amores (?) em embates dependentes dos diálogos entre os atores, em que não faltam trocas de farpas, xingamentos, ameaças, emoções a flor da pele e a peçonha que cai do canto da boca da cobra depois do bote. Ozon acrescenta elementos melodramáticos mais expressivos do que Fassbinder havia feito, com ênfase em cores bastante saturadas nos figurinos e nos cenários.
Denis Ménochet é uma opção interessante para o papel principal, em razão da contradição existente entre o porte físico do ator e a posição hierárquica dentro da indústria com a vulnerabilidade emocional demonstrada em sentimentos reprimidos que não devem nada à novela das 9 (no bom sentido). Assim, embora o espectador se acostume, desde o instante em que desperta da cama, a ouvi-lo realizando exigências abusivas a Karl, momentos de maior sensibilidade, como a dança à voz de um disco de Sidonie, ou quando se ajoelha aos pés de Amir, ajudam a conferir relevo ao trabalho de Ménochet (que é um ator que havia trabalhado com Ozon em Graças a Deus, e que você poderá se recordar de Bastardos Inglórios).
Porém, enquanto Isabelle Adjani (que em 1975 estrelava A História de Adèle H. de François Truffaut e conquistava a indicação ao Oscar) é competente em evocar a celebridade-diva, que flutua em vez de caminhar, e cujos sorrisos e lágrimas parecem programas de tal modo que chegam no momento exato, Khalil Gharbia é menos sucedido em revelar a malícia detrás da jovialidade (a ponto de depender de um bigodinho para isto). Antes, havia tido êxito em evidenciar a inocência (aparente?) de quem parecia estar sendo domado, sufocado e então “conquistado” por Peter.
Seja a forma teatral ou cinematográfica, seja o talento ou não do elenco, nada muda um fato: não existe nenhuma fagulha de identificação do espectador com o sofrimento de Peter Von Kant, que apenas merece o castigo bem-vindo por oprimir Karl – que nem voz tem -, por tentar comprar o amor de uma pessoa e pelo conjunto de ofensas disparadas no terço final. O personagem-título é amargurado, disto não há dúvida, e se rodeia da iconografia daqueles que acreditam terem-no traído e subjugado. Talvez Peter goste de ser castigado, e por isto humilha quem está sob si. Mas, diferente dos abusos e assédios sexuais dos artistas denunciados pelo #MeToo, Ozon tenta evidenciar uma via de mão dupla na existência de um interesse mútuo. Não sei se já é a hora certa de encenar este jogo de interesses, mas a reflexão está aí. Quem também faz este tipo de escolha controversa é Pedro Almodóvar (em Fale com Ela, um estupro desperta uma personagem do coma em que estava).
Por falar no diretor espanhol, as cores de Ozon não são iguais as dele, porque existe um aspecto que o francês não compreende: o melodrama não é um produto apenas da cor ou do design de produção ou do roteiro e atuações acima do tom, é acima de tudo do envolvimento do espectador. E se não enxergamos o que cerca Peter e apenas desejamos que o protagonista sinta o peso das consequências de seus atos, como um anjo vingador extra-diegético, é porque o melodrama perdeu sua razão de existir. Pois, se a emoção está entre as dimensões da tela de cinema, e não se comunica ao espectador, então não resta nada que não a beleza de uma encenação vazia.
P.S. Hanna Schygulla retorna na versão de François Ozon para um papel diferente daquele original.
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.