O novo trabalho do diretor George Miller, de Mad Max: Estrada da Fúria, e mais!
Era uma Vez um Gênio (Three Thousand Years of Longing, 2022), de George Miller
7 anos após Mad Max: Estrada da Fúria, George Miller subverte o conceito de chambre movie ou filme de câmara – em que a narrativa é encenada, em boa parte do tempo, em um cenário único. Dentro do quarto do hotel onde estão Alithea (Tilda Swinton) e Djinn (Idris Elba), George Miller explora as possibilidades infinitas oferecidas pela contação de histórias e imaginação. Apesar de presos, os personagens podem fugir do confinamento a partir do ato de contar e ouvir histórias que os dirigem ao mundo de ontem, de hoje, o mundo mágico, fantástico ou real. É, por que não, lembrança do período em que estávamos isolados na pandemia do Covid-19 e vivíamos o mundo de fora pelas histórias do cinema e da televisão.
Não é diferente da forma como Alithea encarava a vida: a narratologista vive mergulhada em livros e em contato com criaturas da fantasia, que brotam exclusivamente de seu olhar. Sozinha, mas não solitária, Alithea destaca-se com o figurino róseo em contraste com o ambiente cinza e metálico que a cerca. Ela é uma presença vibrante dentro do quadro de George Miller, destinada e aberta a experiências além deste mundo e com o conhecimento suficiente para perceber quais armadilhas e lições de moral o tipo de conto de fadas que nos relata pode proporcionar.
Não entrarei em detalhes e deixarei que vocês curtam a surpresa da premissa da forma como pude fazer. O roteiro é co-escrito por George Miller juntamente com Augusta Gore (a partir de um conto de A. S. Byatt) e também subverte as regras das fantasias que informam este tipo de história. Como Alithea conhece o jogo que está jogando e quais as consequências de agir como se espera que aja, propõe modificações, age contra o esperado, deixa de ser o sujeito óbvio da lição de moral e passa a ser a provocadora desta lição na vida de quem não esperávamos. Mais do que isto, Alithea é uma mulher cuja tristeza guardou dentro de caixas no interior da dispensa e aprendeu a explorar emoções não a partir da experiência própria, mas do que lê. Ela não demonstra arrependimento por ser quem é, não aparenta estar quebrada nem procura ser quem não é. Deste modo, a narrativa é celebratória da solitude de quem aprecia histórias a sós (na literatura, no cinema), embora não despreze a importância da aproximação humana para que a existência seja plena.
O trabalho de Miller é exuberante e virtuoso, produto de um mestre do cinema que sabe como compor uma imagem, movimentar a câmera e, mais importante, como relacionar imagens para que produzam efeitos antes não pensados – como o raccord, a junção de planos semelhantes, da aterrissagem de um avião e do carrinho de supermercado, que além de conferir ritmo fluido à narrativa, também remonta a esta ideia de deixar o mundo das nuvens e retornar às raízes do mundo real. Um ato que é conhecido por quem se habituou a viver nas histórias e fora delas. Os efeitos visuais complementam a narrativa, mas não retiram dela a riqueza que encena, ao lado do design de produção caprichado e da maneira como a fotografia contrasta o mundo da fantasia com o real. Ah, como esquecer a sensível trilha sonora de Junkie XL, que reforça a textura do universo diegético.
Assistir ao cinema de George Miller é prazeiroso, pois percebemos como detrás da dinâmica entre Tilda Swinton e Idris Elba existem dramas e preocupações humanas com que podemos nos relacionar: a retração depois da perda, a incapacidade de se abrir emocionalmente ou o movimento lógico de mergulhar dentro de seu trabalho, a busca por alguém que saiba deixar o outro livre para ir e vir. Detrás de todo conto de fada, há o real, neste caso, a jornada de não ser a luz solitária de seu mundo particular – como Alithea era – mas de auxiliar a iluminar, com suas cores, onde se está. A fantasia não precisa encerrar com um conto de alerta, às vezes há muito a aprender com quem proporciona uma experiência emocional positiva e calorosa como esta.
The Stranger (2022), de Thomas M. Wright
The Stranger é um mood piece disfarçado de thriller criminal e policial, a depender do ângulo que você encara a narrativa. Ao invés de enfatizar a investigação, o procedimento ou a índole dos personagens como aqueles gêneros costumam realizar, existe a preocupação de se criar uma atmosfera perene para narrar o encontro entre Mark (Joel Edgerton) e Henry (Sean Harris).
Ao certo, o espectador permanece às escuras – até mesmo por opção estilística da fotografia de Sam Chiplin, que imerge à narrativa detrás de sombras bastante presentes nas cores mais lavadas e nos temas visuais repetidos e que relacionam ambos personagens. Quem são? Não sabemos ao certo, ao menos até o roteiro baseado em uma história real decidir revelar. Desse modo, a proposição de Thomas M. Wright é capaz de acompanhar o que, à primeira vista, parece ser o planejamento de um crime envolvendo um homem cujo passado misterioso, motivações e emoções nubladas – a exemplo da cena em que toca a genitália de Mark, ou perto dela.
Entretanto, com 117 minutos de duração, a direção exige o preço caro de um ritmo arrastado para o gênero (ou os gêneros). Há silêncio em excesso, não só na falta de comunicação, mas também na expressividade das imagens, e posso garantir que é por esta razão que a mixagem sonora sempre desperta o espectador, literalmente, com trilha sonora ou efeitos sonoros que reproduzem a turbulência interna dos personagens.
O roteiro também é misterioso, introduzindo o ambiente familiar de Mark sem que possamos saber se se trata de flashback, ou não. A propósito, The Stranger obriga a refletir até que ponto uma investigação policial realista é cinematográfica: o momento em que a narrativa vira chave e também revela ser um filme policial, mas um baseado em procedimentos racionais, decisões que ponderam se é válida a prisão planejada. Joel Edgerton é um ator que me agrada, ainda mais em papéis introspectivos iguais a este; já Sean Harris, detrás de espessa barba, é uma incógnita que ora aparenta ameaçador, ora exagerado a ponto de ser inofensivo.
Pensando enquanto escrevo, gosto mais de The Stranger na teoria, em que o hibridismo de gêneros irmãos e a proposta de rejeitar as convenções mais excitantes sugerem uma obra com certo ineditismo, do que na prática, em que a direção de um artista inexperiente cria um filme irregular.
Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness, 2022), de Ruben Östlund
O sueco Ruben Östlund demonstrou ter um senso de humor atípico e eficiente na discussão da masculinidade frágil e tóxica em Força Maior e da arte pós-moderna em The Square: A Arte da Discórdia. Com um talento cada vez mais raro de enxergar a narrativa além da linearidade das regras de causa e efeito, Ruben ainda é um arquiteto de sequências obedientes ao inesperado, alegórico e surreal, como se seus filmes fossem compostos por instalações de arte autônomas, mas que se comunicam dentro do grande esquema das coisas. E comprova não ter perdido a mão na comédia Triangle of Sadness.
O roteiro escrito por Ruben inicia com uma entrevista feita com modelos masculinos e à crítica ao sexismo predominante da indústria, em que mulheres ganham menos do que homens pelos mesmos trabalhos e ainda podem ser objeto de exploração sexual. Porém, como é de praxe na obra do diretor, a crítica é ao avesso: não é direta e militante, e ainda é dupla, já que também critica quem defende a existência de machismo reverso.
É o prólogo antes da apresentação do casal principal: o modelo Carl (Harris Dickinson) e a influenciadora digital Yaya (Charlbi Dean), que viajam para um cruzeiro onde o rapaz deseja pedir a namorada em casamento. Nesta viagem, Ruben logo percebe que a dupla pode ser alvo de críticas à sociedade digital contemporânea, mas os descarta para se dedicar a explorar as incoerências da elite no navio: o magnata russo da merda, o casal idoso e crítico da ONU por haver criado restrições para explosivos individuais (leia-se: granadas), o criador milionário de uma startup e mais. A crítica é alegórica: cada passageiro representa uma ideia, e também um indivíduo concreto, exemplificando em ações as formas como a classe dominante subjuga a classe trabalhadora. Em certo momento, por exemplo, uma passageira só resta determinar que os funcionários do cruzeiro tomem banho de mar como se fossem palhaços circenses para seu deleite.
A narrativa revela a tosquice da elite através de diálogos correntes de WhatsApp que podemos ler nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, e de frases de efeito ditas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher – não a toa, ídolos do Estado mínimo e do mercado desregulado e desumanizado – culminando no momento genial em que Woody Harrelson, que interpreta um beberrão capitão marxista, não comunista, e o igualmente alcoolizado Zlatko Burić, russo mas capitalista, praticamente encenam um diálogo entre um sujeito de esquerda e de direita no Twitter. Aliás, Ruben tem méritos em abraçar a escatologia como mecanismo de revelação da podridão e sujeira da elite.
É uma pena, assim, que a primeira metade de rachar a barriga de rir seja sensivelmente inferior à segunda, com um humor mais cínico oriundo de uma inversão de papéis. Neste contexto, Carl e Yaya viram coadjuvantes de sua história como os personagens alienados do mundo da moda e das mídias digitais para não perceberem as contradições que ajudam a fomentar. São os idiotas úteis que há nas sociedades, pessoas apolitizadas e reprodutoras de discursos que não compreendem. O escanteamento deles é a alternativa óbvia de uma narrativa que sabe a ferida que está cutucando e não tem medo de esgravata-la.
R. M. N. (2022), de Cristian Mungiu
Barbaridade como o cinema romeno é reflexo da humanidade, não apenas das idiossincrasias e hipocrisias de um dos países mais pobres da União Europeia, consequência da interferência sociopolítica da União Soviética, do governo comunista de Nicolae Ceaușescu e da democracia adolescente, corrupta e desigual. Em um pequeno vilarejo e cujo maior empreendimento é uma fábrica de pães onde nenhum habitante local deseja trabalhar, Csilla (Judith State) gerencia o processo de contratação de imigrantes legalizados – vale frisar – para se beneficiar do programa de incentivo da União Europeia. Neste mesmo mundo, Matthias (Marin Grigore) retorna fugido da Alemanha, onde trabalhava em um abatedouro de ovelhas, para reencontrar o filho, que não fala, o pai doente, a ex-esposa e a antiga amante, Csilla.
Diferente de 4 Meses 3 Semanas e 2 Dias e Além das Montanhas, em que o roteiro era direto, este R. M. N. é um mosaico cujas ramificações são apresentadas, desenvolvidas e interligadas com a paciência de um diretor que entende a importância da preparação antes de alcançar o clímax. Nem sempre as relações entre as subtramas estão conectadas com precisão ao tema central da política xenofóbica de parte da comunidade europeia, a partir do exemplo deste local habitado, ironicamente, por imigrantes húngaros que inflamam a comunidade contra pessoas de cor (claro, o preconceito sempre tem cor!) com a conivência da igreja cristã.
O diretor repete a opção estilística de seus trabalhos anteriores. A fotografia invernal subtrai as cores em favor de um azul sombrio – com raras exceções nos figurinos de Csilla, que quebra a regra da fotografia tal como a personagem é contrária aos preconceitos conservadores. Já o ritmo apenas parece lento, pois as múltiplas histórias paralelas envolvem o espectador de tal modo preparando-o para o ápice, realizado em uma cena sem cortes, que dura algo em torno de 10 minutos e que expõe o pensamento de parte dos autodenominados cidadãos de bem.
Enquanto isso, o roteiro de Mungiu estabelece personagens complexos, em particular o bruto e viril Matthias – associado aos lobos ou aos ursos pela profissão que possuía e pelos costumes locais – dentro de uma trama idem, que percebe como as melhores intenções de alguns poucos podem ser facilmente arruinadas e corrompidas por pessoas vis e preconceituosas. E o recurso da violência, embora seja prática reiterada, nem precisa ser o medida final, quando mexer com dinheiro é bem mais eficaz.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Diário do Festival de Cannes, Dia 5”
Legal , gosto de Cristian Mungiu. Depois de 4 meses… quero ver todos os filmes desse diretor.