Com Men, de Alex Garland, na Quinzena dos Diretores
Marcel! (2022), de Jasmine Trinca
Os créditos iniciais anunciam que Marcel! é uma ópera, a qual é subdividida em 10 partes e marca a estreia da atriz Jasmine Trinca na direção de longas-metragens. Se a narrativa não reproduz a essência melodramática característica da ópera, é porque a direção se apropria das imagens e dos silêncios como alternativa de expressão lúdica mais eficiente.
O roteiro simples consiste em duas buscas: a da Filha pela Mãe, e a desta pelo cachorrinho que dá título ao filme. Estas buscas por completude ajudam na concepção do visual adotado pela diretora, em que espaços vazios ditam a tônica da vida Filha, interpretada pela jovem Mayane Conti como o quadro branco em que a diretora projeta emoções, ao invés de delegar a tarefa à garota. Se a Filha expressa-se, é através do saxofone, cujas notas tímidas ou até desafinadas evidenciam a sua imaturidade.
Ao lado dela, a atriz Alba Rohrwacher, que contrapõe a inexpressividade calculada com a dança calorosa com que ganha trocados de uma plateia invisível – que gosto de imaginar que seja composta dos espectadores, que arremessam moedas como se estivessem diante de uma fonte de desejos. A Mãe é inquieta e intensa, o que reforça o motivo por que a Filha é tímida e reprimida. A conversa entre elas se dá, mais fortemente através de olhares e da composição da imagem, que começam a dividir.
Além disso, Marcel! tem um senso de humor mágico Felliniano, como ao vermos a bilheteria brotar do éter e se instalar diante de Mãe e Filha para dificultar seu acesso. O roteiro enfatiza questões geracionais que transbordam o núcleo central e alcançam a Avó, na gag visual em que o quadro sobre a cama da Filha muda de acordo com a comparação por aquela feita. A atriz e diretora ainda consegue participações especiais no elenco, como a de Valeria Golino, Valentina Cervi e Umberto Orsini, que tornam cada um dos 10 capítulos desta ópera tragicômica em uma experiência cinematográfica incomum e bastante satisfatória.
Restos do Vento (2022), de Tiago Guedes
Caso competisse na mostra principal, Restos do Vento seria um fortíssimo candidato à Palma de Ouro. O filme dirigido por Tiago Guedes encena, na forma de thriller, mas com traços bem típicos do cinema português, a consequência da falta de responsabilização contida em uma história realista, povoada por personagens igualmente reais, cujas ações e reações são verossímeis e sem que estas características prejudiquem a licença artística da linguagem do cinema.
O roteiro apresenta um ritual de passagem masculino que marca a passagem da adolescência para a vida adulta, em que jovens vestidos com máscaras de espantalhos aterrorizam as ruas do vilarejo onde se passa a ação, incentivados pela geração anterior – em razão das tradições (ah, as malditas tradições!) e estimulados por álcool. Se, por exemplo, uma mulher está na rua durante o evento, deve ser punida ou até mesmo violentada, e é isto que Laureano (um destes jovens) impede na ocasião. Como consequência, é espancado violentamente e, anos depois, exibe as sequelas comportamentais e psíquicas das ações brutais realizadas por homens detrás de capuzes (o equivalente aos avatares das redes sociais nos dias de hoje).
Décadas depois, apesar da descontinuação deste ritual, a cidade continua hostil às mulheres e também àqueles na mira de jovens opressores, a exemplo do filho único de Samuel, o coronel daquele vilarejo e que detém o poder da cidade. Após atirar pedras contra Laureano e também de tentar abusar da namorada, Salomé, o jovem aparece morto durante uma festividade local. Acredita-se se tratar de acidente, já que o cadáver dele estava sendo devorado pelos cachorros que acompanham Laureano por onde anda.
Escrito por Tiago Guedes e Tiago Gomes Rodrigues, o roteiro funciona como um relógio suíço e permite que a narrativa estabeleça, com paciência e inteligência, o desenrolar da investigação e a revelação do que já suponhamos: a morte do rapaz não se deu por acidente mas assassinato. Logo, as relações familiares e os dilemas morais mexem no processo de tomada de decisões dos personagens, por melhores ou mais razoáveis que pareçam ser. Ninguém age de modo açodado somente para acentuar a tensão do thriller; esta construção é fruto do mecanismo que valoriza o planejamento dos passos de cada personagem, dados em razão da quantidade de informações que possuíam no momento e em como acreditam que agem da forma adequada para aqueles que amam.
O melhor exemplo disto é Samuel (uma bárbara atuação de Nuno Lopes), e a quebra do familiar estereótipo do pai vingativo, em favor da exploração do luto e da relação conturbada com a ex-mulher e mãe de seu filho. Já Judite (Isabel Abreu) parecia ser apenas a fiel da balança para conferir sensibilidade à narrativa, até a trama oferecer a oportunidade para que a personagem vá além. E mesmo o protagonista (Albano Jerónimo), aparentemente unidimensional, ganha um contorno adicional quando é obrigado a decidir pelo coração de outra pessoa.
Restos do Vento ainda realiza um trabalho de edição sonora admirável, misturando os sons dos pássaros, que deveriam remeter à paz, aos dos cachorros, que servem como um elemento de ameaça e instabilidade na narrativa, criando um vilarejo contraditório. Já os sons das turbinas eólicas ou da água na banheira ajudam a expressar os sentimentos internalizados em função da culpa ou da dor.
Enquanto isso, a direção de Tiago foge do formalismo comum no cinema português – vide as obras de Manoel de Oliveira ou de Miguel Gomes – em favor de uma abordagem aproximada e realista que acompanha os personagens e as ações bem após exaurir seus conteúdos. Faz isto com composições evocativas, como aquela em que o reflexo de Judite esconde-se no canto inferior da tela como se estivesse com vergonha da decisão tomada pela personagem. Aliás, tragicamente, com ou sem máscaras, os homens perpetuam a violência e injustiça, produto da ausência de responsabilização e da dinâmica de poder, trabalhadas por este excelente filme português.
Les Amandiers (2022), Valeria Bruni Tedeschi
Eu sou apaixonado por cinema francês desde que comecei a explorá-lo a partir da nouvelle vague, movimento que acabou tornando lugar-comum o retrato da sociedade francesa como palco artístico menos hipócrita do que era Hollywood. A nouvelle vague popularizou o sujeito avalizado em explorar os desejos sentimentais, sexuais e existenciais do indivíduo da forma como fosse, retratando-os a partir de atuações que alternam entre o blasé de Brigitte Bardot, Jeanne Moreau ou Isabelle Huppert a excessos como se apenas existisse o viver ou o não viver, e o morno não fosse alternativa.
60 anos depois, chegamos a Les Amandiers, que convida o espectador a vivenciar a França (e os Estados Unidos) nos anos 80, quando estudantes de atuação viajam a este país a fim de praticar antes de retornarem para encenar uma peça baseada em Anton Chekov. É o período da epidemia de AIDS, da comercialização do crack nas ruas, da expressão da sexualidade, e estes elementos parecem contagiar a atriz e diretora Valeria Bruni Tedeschi a transformar seus personagens em autênticos clichês ambulantes.
Na opinião de Valeria, apenas há atores promíscuos ou viciados em drogas, que expressam a arte sempre dois, três tons acima, como se a expressão emocional somente fosse válida se as vestes fossem arrancadas no palco ou através de gritos, choros copiosos ou sentimentos a flor da pele. Poderia ser só o caso de Stella, mas não é. Interpretada por Nadia Tereszkiewicz, cujo talento está sufocando por trás dos excessos e é revelado apenas na cena final, no franzir do nariz que revela mais do que tudo feito antes, Stella é evidência central mas não exclusiva de uma direção de atores maniqueísta: se não é 80, é 8, caso de Étienne (Sofiane Bennacer) que reprisa o estereótipo do rapaz drogado, de corpo curvado, suor no rosto.
Além dos estereótipos no lugar de personagens concretos, o roteiro é clichê e mal resolvido, com conflitos relacionados a personagens coadjuvantes, introduzidos e resolvidos de qualquer forma. A fotografia granulada até evoca a atmosfera da época, mas boas ideias param aí: Stella, ao longo da narrativa, utiliza e reutiliza casaco ou roupas vermelhas a fim de simbolizar a intensa paixão, mas, claro, em certo momento da história, troca-os por azul retratando sua tristeza.
O filme ainda procura humor onde não há humor, na cena que sugere um assédio do professor por uma aluna, apenas para depois esta aproveitar o momento em que ele está desacordado a fim de tirar onda junto às colegas. Embora a idade adulta comece com energia e desejo de abraçar o mundo, Les Amandiers é um retrato maniqueísta não só deste período, mas também do próprio ofício de ator.
Men (2022), de Alex Garland
Em seus trabalhos passados, Alex Garland debateu temas caros às mulheres como a opressão da andróide de Ex_Machina ou a presença dominante de mulheres cientistas em Aniquilação. Já em Men, cujo roteiro também escreveu, o diretor dá um passo adiante e retrata a misoginia e também comportamentos masculinos sexistas a partir de um terror alegórico que conta com o protagonismo da indicada ao Oscar Jessie Buckley e da atuação plural de Rory Kinnear.
A trama acompanha a chegada de Harper em uma casa de campo na Inglaterra para repousar após a trágica morte do ex-marido, pela qual se culpa. Ao chegar lá, é recebida por Geoffrey, sujeito esquisito (como uma espécie de Mike Myers com dentição de Rami Malek em Bohemian Rhapsody) mas aparentemente inofensivo. Certo dia, enquanto caminha pela floresta que rodeia a propriedade, é surpreendida por um homem nu que a persegue e isso dispara uma série de encontros com personagens da região que têm uma característica comum: o mesmo rosto de Geoffrey.
Aspecto curioso de Men é que a percepção da identidade de Geoffreys é feita pelo espectador e não pela personagem, ao menos não a princípio, e cada um destes Geoffreys é autor de um comportamento sexista específico, ora aparentemente inofensivo (como pagar a conta quando a mulher deseja fazê-lo ou ser o príncipe salvador), ora abusos maiores. A ação é executada a frente de um pano de fundo que envolve simbologias cujas chaves de interpretação estão dentro da narrativa ou são óbvias o bastante para que possamos compreendê-las sem visitar fatídicos vídeos do YouTube.
A árvore de onde retira uma maçã remete a Eva no jardim do Éden e se relaciona ainda com o pecado original de que trata as religiões cristãs. Já a ideia de eco, além de estar associada ao grito, um elemento recorrente na narrativa, também sugere a multiplicidade ilustrada de forma concreta. Outros elementos, a exemplo da coincidência de ferimentos e o final em aberto, são facilmente compreendidos porque Alex Garland deixa às claras, seja através dos diálogos e de imagens remissivas (o túnel, a fenda no espaço, a genitália feminina, enfim… ninguém precisa ser formado em astronomia para digerir Men).
Entretanto, não é a metáfora central, nem o body horror que, confesso, pareceu-me uma forma de H. P. Lovecraft, mas a constatação de que todo homem, ao menos uma vez, já realizou um dos comportamentos retratados no filme que é o aspecto mais assustador deste terror.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.