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Diário do Festival de Cannes, Dia 7

Diário do Festival de Cannes, dia 7

David Cronenberg apresenta Crimes of the Future e mais!

Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind (2022), de Ethan Coen

Se Jerry Lee Lewis não tivesse existido, creio que poderia ter sido criado na obra dos irmãos Coen. Ao mesmo tempo, não consigo imaginar alguns de seus filmes embalados por música folk, que não tenham sido concebidos através da colaboração com o compositor T Bone Burnett, certamente inspirado no controverso cantor de rock e country. A verdade é que Ethan Coen (ou até Joel, se fosse o caso) e Jerry Lee Lewis estavam destinados a se encontrar no meio da estrada. 

Apesar de não se aprofundar além do que 73 minutos permitem fazer, Ethan Coen – que havia anunciado a aposentadoria e parece haver voltado atrás – realiza o que pode para compilar e estruturar vídeos de arquivos. É um passeio, nada mais. Ethan menciona, e apenas menciona, os aspectos controversos da carreira de Jerry: o casamento com a prima de 13 anos de idade quando tinha 22, a rixa com Elvis Presley. Não há tempo para juízo de valor na narrativa, não há tempo para aprofundamento. 

No lugar, Ethan emprega Jerry Lee Lewis para comentar sobre Jerry Lee Lewis com a imodéstia e a polêmica características. Não era assim por malícia, mas porque era parte do show do astro ser assim. E, enquanto escutamos o documentário, chegamos à conclusão de que Jerry não estava errado em se colocar no patamar altíssimo de lenda do rock e country.

O documentário é envolvente, pela música e pelo carisma do biografado, e um sumário para quem deseja começar a pesquisar este ou aquele assunto com maior profundidade. E ainda permite que Ethan Coen introduza seu humor ácido de forma comedida, ao realçar o parentesco na árvore genealógica de Jerry ou ao inserir um recorte de jornal sobre o motivo da prisão do cantor em determinada oportunidade. Podemos querer mais? Sim, mas o trabalho de Ethan é competente e por ora é o que temos. 

Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind': Ethan Coen Spotlights Lewis's Joy -  Variety

Holy Spider (2022), de Ali Abassi

Na televisão, o atentado terrorista contra o World Trade Center demarca a época em que o Assassino Aranha provocou a morte de 16 prostitutas nas ruas da cidade de Mahshad, Irã, desejando realizar um jihad (ou seja, guerra santa) contra mulheres que acreditava serem corruptas e que mancharam o território sagrado. Na superfície, Saeed (Mehdi Bajestani) era o homem de família, com emprego público municipal, muçulmano praticante. Detrás da fachada, escondia o psicopata movido pelo combustível do fundamentalismo religioso, pela vaidade em ler o nome estampado nos jornais e pela misoginia com que sentia prazer sexual ao estrangular mulheres. 

O diretor iraniano, mas radicado na Dinamarca Ali Abassi (de Shelley e Border) não pôde filmar no Irã, mas na Jordânia, país a que Hollywood recorre sempre que deseja contar este tipo de história. Seu roteiro estrutura a história em duas metades e também duas perspectivas: a da jornalista Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi), que enfrenta o sistema feito para oprimir mulheres e desinteressado em capturar o assassino, e a de Saeed, na preparação e execução dos crimes e nos momentos em família. Ali não adota este ponto de vista para humanizar o assassino como se pode supor, mas para normalizar e naturalizar a violência contra a mulher impregnada no dia a dia do país. 

A narrativa adota uma forma crua e característica do cinema do Irã, com uma fotografia realista e urbana que acompanha os personagens e ilustra os conflitos pelo conteúdo não propriamente pela forma. Tenho o pé atrás quando a violência é explícita e em que há closes em que vemos o rosto deformado das mulheres após golpes: se isto choca quem tem empatia, alimenta o prazer de quem não a tem; além do mais, depois do primeiro assassinato, a decupagem pode buscar a síntese, pois reconhecemos o modus operandi do assassino e investir no contraplano de baixo para cima, que revela o retrato de superioridade e expõe o semblante repulsivo, essencial na construção do personagem. 

Mas se engana quem pensa que a narrativa é um jogo de gato e rato como no típico thriller de assassinos em séries. Há mais em jogo na abordagem de Ali na crítica ao sistema patriarcal do país de muitas formas – o elemento comum de praticamente 9 em 10 filmes iranianos. De um lado, o roteiro realça a dificuldade da jornalista em se hospedar no hotel, por ser solteira, ou a ameaça feita por um policial que não é levada adiante. Do outro, revela como o Assassino Aranha chegou a ser percebido como um herói por membros da sociedade que compactuaram com sua interpretação religiosa torpe e cruel, incluindo mulheres e crianças, que reproduziam o discurso dominante da classe opressora. 

Essa metade da narrativa é superior à primeira, pois evidencia que o assassinato não é um problema isolado, mas parte de um sistema mais amplo e que, se funciona às vezes, é em função de pressões políticos e eleitoreiras, e não do interesse genuíno em procurar justiça pelos crimes cometidos contra mulheres. Holy Spider é, assim, melhor quando menos visceral e mais politicamente carregado. Pois aí está a raiz dos problemas de um país que trata mulheres como cidadãs de segunda classe.

Holy Spider' Cannes Review: An Iranian Serial Killer Tale – The Hollywood  Reporter

Joyland (2022), de Saim Sadiq

Esta crítica tem agradecimento ao Pablo Villaça, ele sabe o motivo! 

Saim Sadiq é um diretor paquistanês formado na escola de artes da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e Joyland, sua estreia na direção de longas-metragens, é um exercício de sensibilidade dramática e humana a partir de uma história inclusiva, representativa e, na maior parte das vezes, aprofundada no drama de seus personagens. 

O roteiro de autoria de Saim acompanha a jornada de uma família palestina depois de acolher a mais nova integrante: a quarta filha de Saleem, o primogênito. Seu irmão desempregado Haidar é casado com Muntaz, que trabalha para ajudar no sustento da família, enquanto aquele auxilia na criação das sobrinhas, nas tarefas domésticas e no cuidado do pai viúvo com dificuldade de locomoção. Esta dinâmica familiar é alterada após Haidar ser contratado como dançarino em uma casa de shows – embora precise mentir de que trabalha como gerente do local – e Muntaz engravidar de um bebê homem, afastando-a do trabalho como maquiadora. 

Um outro ponto de mudança? A relação afetiva com a dançarina transsexual Biba (Alina Kahn), que lida, dia a dia, com piadas transfóbicas e humilhações. 

A narrativa é diversificada em como apresenta, para cada personagem, dramas que limitam a existência plena. Mesmo Saleem, o menos afetado dentro da sociedade patriarcal, está preso ao fato de que sua esposa não gestou o filho homem que o pai tanto esperava. Já este, tem a alegria do convívio com a tia frustrada por convenções e costumes sociais que não acham ser de bom tom o tempo que ela passa na casa dele. Enquanto isto, Muntaz abdicou daquilo que a completava por um homem que não a ama como desejava ser amada, por ser homossexual Haidar. E, ao pensar no protagonista, que reprime quem é para sobreviver o preconceito, noto que o envolvimento com Biba acontece porque deseja ter a agência e coragem de enfrentar a discriminação. 

Saim adota uma concepção visual que auxilia a ilustrar os dramas individuais, respeitando os vazios dos personagens e os enquadrando de modo desconfortável – com bastante ar sobre as suas cabeças. Às vezes, estão a sós no quadro para retratar que não encontram o acolhimento buscado nos outros. A fotografia é requintada: os planos longos permitem que a atuação seja mais visceral, já que possuem tempo para expressar as verdades dos personagens, enquanto o jogo de cores complementares (verde e vermelho) e os traços néon compõem o mosaico deste mundo que, no restante do tempo, é apenas cinza e áspero. 

Joyland é melancólico enquanto buscamos a brisa marítima que respira liberdade. É sobre as consequências da guerra individual existencial e da negativa de sermos quem somos. 

Joyland' Cannes Review: Pakistani Drama of Gender and Sexuality – The  Hollywood Reporter

Decision to Leave (2022), de Park Chan-wook

Desejo, sexualidade, vingança e repressão são temas recorrentes na obra de Park Chan-wook presentes em Decision to Leave lançado 6 anos depois de A Criada e 4 da minissérie The Little Drummer Girl. O roteiro trata de um investigador policial meticuloso mas com insônia, Hae-joon (Park Hae-il), responsável pela investigação do acidente ou suicídio ou homicídio do marido de Seo-rae (Tang Wei), que considera a principal vítima. 

Os instintos de Hae-joon podem estar corretos, em representações do raciocínio investigativo que oferecem oportunidades para que Park Chan-wook invista em decisões estilísticas fluidas e elegantes. Bom exemplo é aquela em que Hae-joon coloca-se no ato da ação para enxergar ou confirmar a conclusão que havia imaginado com as provas de que dispunha. Somado a isto, a exploração do sentido da visão e o voyeurismo logo remetem ao cinema de Alfred Hitchcock e especialmente Um Corpo que Cai, em que é possível perceber que Hae-joon é a versão sul-coreana e igualmente obcecada de James Stewart.

É que a dinâmica de Decision to Leave não é voltada ao whodunit, pois não há alternativas de suspeitos senão Seo-rae, mas ao romance construído a partir da aproximação entre a mulher que traz paz ao investigador – afinal, é quem o ajuda a dormir – e ao que este representa para ela. A investigação é a oportunidade de encontros para comer sushi na sala de interrogatório e  para explorarem a extensão do desejo a partir da visão que permanece de fora que anseia em ser convidada para entrar. 

A dinâmica da câmera, cujo movimento do corpo e da lente estão integrados na narrativa como forma de conferir agilidade à ação, também remete à evolução do relacionamento e a coleta de provas que colocam a perder o que havia sido construído. O maior pecado de Hae-joon é ser o marido covarde que é e, ao mesmo tempo, o policial competente na delegacia em que não há criminalidade. Assim, o tédio que o envolve é inverso à agilidade de uma narrativa cujos 138 minutos parecem voar rápidos demais.  

E Park Chan-wook não tem vergonha de exageros românticos, pois é esta a base que adotou para este thriller policial inconvencional. Se o amor platônico ou idealizado tende a ser melhor do que o amor de 16 anos e 8 meses, estatísticas e sexo frio, então o mistério não resolvido é melhor do que o solucionado, pois ajuda a manter, no mural de memórias, a lembrança de quem jamais desajaríamos esquecer. 

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Crimes of the Future (2022), de David Cronenberg

8 anos depois de Mapas para as Estrelas (2014), o quase octogenário cineasta canadense David Cronenberg apresenta o esperado retorno aos longas-metragens com um filme que é homônimo daquele que dirigiu em 1970 (embora não sejam relacionados). O diretor até havia brincado que muitas pessoas sairiam da sala com 5, 10 minutos de projeção, mas Crimes of the Future é tão morno que mal consegui esboçar o sentimento de repulsa ou desconforto que os melhores filmes do cineasta alcançam. 

A premissa é interessante: no futuro retrô apresentado, alguns seres humanos começaram a desenvolver tumores que se transformaram em novos órgãos do corpo humano. Um deles é Saul Tenser (Viggo Mortensen), um artista cuja obra é criar estes órgãos que são extirpados e tatuados pela colaboradora Caprice (Léa Seydoux), cuja cirurgia equivale à arte performática da época. No roteiro ainda entram em cena um setor do governo responsável por catalogar e documentar estes órgãos e também uma organização à margem da sociedade que tenta impor um órgão capaz de digerir plásticos. 

É, eu sei, é estranho, tal como a maioria das obras de David Cronenberg. A estranheza está em cenas específicas, como as cirurgias transformativas da aparência ou a dança de um ser com orelhas espalhadas pelo corpo (argh!, arrepio apenas ao lembrar disso). Porém, nem só de estranheza sobrevive seu cinema, que começa a disparar meio mundo de críticas (muitas delas em tom excessivamente expositivo).

Até entendo que o procedimento precise ser explicado em voz alta a partir da utilização de uma equipe governamental leiga no que Saul e Caprice fazem. No entanto, o diretor mastiga demais muito do que sugere: a insensibilidade provocada pela resistência à dor é inibidora da libido, de tal forma que os personagens estão buscando, no fim das contas, uma forma de sentir o prazer sexual sem praticar sexo a moda antiga; já a reflexão em torno do que é arte, e o que não é, é enunciada em alto e bom tom que nem vale a pena repetir na crítica. Há ainda espaço para um murmúrio sobre a sociedade plastificada e artificial, seja na forma de cirurgias, seja na crise do plástico (o material). 

Mesmo a construção da estrutura do roteiro é falha, com personagens cujas ações e funções não ficam evidenciadas senão, de novo, em diálogos expositivos (como Kristen Stewart), ou a utilização de elementos cênicos que provocam reações em termos de imagem apenas, não da narrativa (os equipamentos que parecem saídos de um conceito visual abandonado de eXistenZ, com que este tem muitas semelhanças). 

Viggo Mortensen atravessa a narrativa consertando a garganta e sussurrando, enquanto vestido como a Morte de O Sétimo Selo. Já Léa e Kristen estão dependentes de cenas específicas para poderem se expressar. Quem se destaca é Scott Speedman, com um papel idealista e, por isto mesmo, trágico. No fim das contas, no entanto, Crimes of the Future mal cumpre o papel de chocar, quanto mais de provocar reflexões com um roteiro que passou por um estômago artificial antes de chegar a nós.

Crimes Of The Future' Review: David Cronenberg's Unfinished Business With  The Flesh Is Booming [Cannes]

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