Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Diário do Festival de Cannes, Dia 9

Diário do Festival de Cannes dia 9

Margaret Qualley em novo trabalho de Claire Denis, e mais! 

Hoje, havia programado dois filmes adicionais: Metronom e Dodo, mas o cansaço obrigou-me a desistir.

Domingo y la niebla (2022), de Ariel Escalante

O primeiro filme costarriquenho a disputar uma mostra competitiva em Cannes, a Um Certo Olhar, Domingo y la niebla é um exercício de construção de atmosfera partindo de uma história simples: Domingo (Carlos Ureña) é um homem idoso, solitário, que habita em um vilarejo remoto e assiste a seus vizinhos serem assediados por empreiteiros para venderem seus imóveis com o propósito de construir uma rodovia. É claro, porém, que Domingo é contrário ao negócio, não importa a quantia que seja oferecida, porque onde habita, apesar de precário, tem valor sentimental ao lembrá-lo da falecida esposa. 

Ariel Escalante, que não é parente do mexicano Amat Escalante, emprega planos extensos e característico do cinema centro-americano, a fim de retratar o passar do tempo lento naquele local. Com a câmera próxima de Domingo, acompanho-o em suas caminhadas ou enquanto realiza afazeres ou conversa com a filha, que é favorável à venda do casebre, ou o vizinho, que enxergo como a versão mais jovem de Domingo – considerada a história de seu casamento ou como lida com a situação do imóvel. Em meio a isto, a neblina do título, o elemento fantástico, passeia pelo vilarejo e não há mistério quanto ao que simboliza. Ou quem.

Apesar da ordinariedade da trama, em que um homem a serviço de uma empresa poderosa oprime um homem humilde através do dinheiro e poder e em que as cartas estão marcadas desde o princípio sem que pareça haver meio de escapar do destino certo, Domingo y la niebla captura o espectador, por 95 minutos, dentro da atmosfera construída por Ariel. A do mundo real, fotografado sobretudo noturnamente, mas em que ainda há a brecha para que a fantasia penetre. Não que seja forte o bastante para interferir nas coisas dos homens; é tão somente a lembrança de um tempo passado em direção ao esvaziamento. 

Leila’s Brothers (2022), de Saeed Roustayi

Nos primeiros minutos de Leila’s Brothers, parecia conhecer para onde Saeed Roustayi estava me levando durante o desenvolvimento deste drama familiar. Pode ser que seja consequência de haver assistido a tantos exemplares do cinema iraniano, crítico da sociedade patriarcal do país e do papel da mulher neste meio. Contudo, enquanto o diretor apresentava com paciência os membros da família encabeçada pelo patriarca Heshmat (Saeed Poursamimi), plantava a semente de uma construção inédita de uma história que pensávamos conhecer. 

A história expande a ideia do patriarcado além do núcleo da família, em direção ao clã, que sempre marginalizou Heshmat, apesar de este haver sido prestativo sempre que precisaram dele. A morte do patriarca anterior abre espaço para que Heshmat flerte com a ideia de que pode conquistar, tardiamente, a honra que acredita merecer mesmo que isto represente a infelicidade ou infortúnio de seus filhos. A maneira com que somos percebidos por pessoas externas no lugar de como somos amados pelos nossos filhos é o tema central de uma obra que revela costumes que desconhecia do país: a cerimônia do anúncio dos presentes durante uma festividade é um destes momentos, associado à dinâmica do comportamento do clã. 

Melodramático, ao menos considerada a dimensão familiar e a extravasação de sentimentos, Leila’s Brothers transforma 165 minutos de duração em um processo longo, mas não árduo de constatação do poder autodestrutivo que há em conservar tradições que impedem o progresso da família (metonímia da sociedade iraniana). Leila (Taraneh Alidoosti, de O Apartamento) pode perceber a ladeira em direção à qual o pai empurra a família e desenvolve um plano particular a fim de que os quatro irmãos tenham uma vida mais digna. A análise fria do cenário não subtrai sua sensibilidade, mas tampouco atenua sua indignação quando é ignorada por ser mulher não casada. Seu comportamento insurgente contra a autoridade do pai (qual?) é a crítica ao regime patriarcal, ultrapassado, conservador do país, como se Saeed comentasse, através do cinema, o óbvio: deveríamos escutar mais o que as mulheres têm a dizer. 

O inconformismo demonstrado por Taraneh Alidoosti extravasa na forma de lágrimas ásperas de quem percebe ter razão, embora não possa fazer nada para mudar a cabeça dos irmãos. A maioria deles, a exemplo de Parviz, é definida a partir de características físicas e morais, porém com a constância de amarem o pai, apesar de seus defeitos. O irmão com quem Leila mais tem contato é Alireza (Navid Mohammadzadeh, de Nahid:  Amor e Liberdade), recém desempregado, que retorna para o convívio com a família e, em especial, o pai. Alireza é vítima da covardia que o impede de ser forte quando a situação assim exige, submetendo-se à hierarquia de modo até visual – quando é confrontado por um primo e subjugado pelo cenário que o encolhe. 

A narrativa é estruturada em torno das relações familiares e também do que os integrantes da família escondem uns dos outros, criando pontos de desconfiança e subterfúgios que minam a capacidade que poderia haver de união. Até podemos criticar Leila pela forma com que toma as decisões, mas não a intenção que despeja em prol da família; de outro lado, Heshmat é tomado como um sujeito curvado pelo efeito da idade e com a aparência ingênua octogenária que revela um homem mesquinho, não por maldade, e sim por crer no valor dado a títulos banais. 

A busca por um trono no clã impede-o de enxergar que, apesar de desgastada pelo tempo e com rasgos na costura, onde deveria estar é na simbólica poltrona de casa, olhando para os filhos e netos que povoam o que deveria ter maior valor. Já Leila, que carrega o título do filme sobre as costas, aprende que deve permanecer no pano de fundo da sociedade mesmo que o plano idealizado não tenha razão para falhar. O que frustra ambos desígnios? A sociedade patriarcal iraniana.

Stars at Noon (2022), de Claire Denis

2022 é o ano em que a septuagenária diretora francesa Claire Denis lançou dois trabalhos: Avec amour et acharnement, lançado no Festival de Berlim e co-protagonizado pelo presidente de júri do Festival de Cannes deste ano, Vincent Lindon, e agora Stars at Noon, que é um filme com a cara do cinema de fluxo da diretora e dos temas que lhe são caros. 

Claire Denis retoma a ideia do não pertencimento para acompanhar a trajetória errática da norte-americana Trish (Margaret Qualley, de Maid), uma jornalista que, após um artigo cujo conteúdo desconhecemos embora saibamos ser crítico às forças da Nicarágua, permanece aprisionada no país sem o passaporte nem dinheiro em dólares que permitam o regresso. A direção retrata Trish como símbolo de ingenuidade dentro do esquema de interesses que há. Ela é uma comentarista de Twitter que crê poder realizar a diferença dentro deste mundo dos homens, em que é tratada como prostituta por todos com que se relaciona – não há personagem masculino na narrativa que não a chame assim. Dentro da lógica narrativa, em que Trish é explorada pelas forças políticas, a percepção de Claire é apropriada, apesar de dura. 

A diretora também tem a oportunidade de retomar a questão do neocolonialismo, na ótica da interferência norte-americana nas Américas Central e do Sul. A exploração não é somente o desejo de se alimentar das reservas de petróleo do país – sempre o petróleo! -, mas na forma como os norte-americanos (ou inglês) abusam dos habitantes locais, provocando a destruição da sua propriedade (o carro em chamas) ou mesmo a morte (o taxista). Claire expõe um jogo em que há somente personagens imorais, inclusive Trish, cuja jornada pegamos no meio do caminho. 

Sua direção é descompromissada com o simples ato de contar histórias, o que pode frustrar quem busca uma linha narrativa clara – embora não haja dificuldade em compreender qual o conflito central da trama. No cinema de Claire, o essencial é a expressão do agora, a exemplo da cena, coberta de cores arroxeadas, em que Trish e Daniel (Joe Alwyn) trocam olhares e dançam embalados por uma trilha sonora jazzística. Este fluxo de imagens, de situações, de enrascadas é, de modo individual, superior ao todo na visão da diretora. Não precisa haver o encadeamento objetivo de início, meio e fim, com a diretora optado por estender a duração até 140 minutos no acréscimo de momentos que representam becos sem saída (a tentativa de câmbio de moeda). Já as cenas de sexo, o melhor símbolo do agora, são meios de explorar o momento (e o corpo do próximo) com a indiferença à crise em que estão os personagens. 

Margaret Qualley acerta, na maior parte do tempo, em conferir um misto de tédio e urgência a Trish, embora haja – talvez fruto da construção da personagem no roteiro – momentos vagos e comportamentos que dificultam o estabelecimento de identificação com a personagem. Já Joe Alwyn emula o papel que poderia ter sido de Robert Pattinson, enquanto o restante do elenco tem participação reduzida. É difícil até tatear a situação, em virtude do tempo – cerca de quatro décadas -, da recusa em estabelecer o contexto e da protagonista que não conquista o olhar do espectador. 

Se torcemos por Trish, é apenas por padrão, não por envolvimento, na evidência de que Stars at Noon é carente de algo: não dos traços estilísticos da diretora, mas do elemento humano.

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