A trágica história da mulher casada com seu sequestrador
Uma mulher é encontrada desacordada à beira da estrada, ainda com vida, e levada às pressas para o hospital suspeita de ter sofrido um atropelamento. Tempos depois, Clarence Hughes, homem de meia idade, chega no hospital e alega se tratar de sua esposa, Tonya Hughes, dançarina em um bar de strip tease e mãe de um garotinho, Michael, com 2 anos de idade. Apesar dos cuidados intensivos, Tonya não resiste. Sob suspeita de que Tonya e Michael estavam em um lar abusivo, o garoto é enviado para uma família adotiva e a tutela dele é levada ao tribunal, que confirma, através de exame DNA, que Clarence não é seu pai. O que parecia estar resolvido volta à tona, após 4 anos, quando Clarence invade o colégio onde Michael estuda e o sequestra, obrigando o FBI a apreciar pistas que levaram à conclusão chocante acerca da identidade de Tonya e Clarence.
A Garota da Foto é um documentário prato cheio para quem gosta de mistérios com reviravoltas a cada esquina, e a diretora Skye Borgman (de Sequestrada à Luz do Dia) sabe disto. Ela conduz a narrativa como se puxasse o fio que descostura o tecido por inteiro e revela, por debaixo da costura, a verdade. Desta maneira, o documentário é um espelho do caso real, trazendo a cada descoberta a sensação de marco temporal apto a ressignificar os fatos e as violências apresentados antes. Aquelas pessoas que ajudaram a investigação a descobrir a verdade também ajudam Skye a contar a história, incluindo-as, no presente, no papel de depoentes, enquanto revelam a trágica história de Sharon, não Tonya, e a monstruosidade de Franklin, não Clarence.
A arte da dissuasão é no que aposta a diretora, que confia na materialidade de cada revelação. No lugar do sensacionalismo comum neste tipo de documentário, a objetividade de uma diretora que sabe que a força da história é suficiente além de qualquer adição que pudesse estragar o equilíbrio alcançado. Skye estrutura a cronologia dos eventos de maneira clara, revelando que os crimes não começaram em 1990 (quando encontraram o corpo de Sharon) ou em 1994 (o ano do sequestro de Michael Hughes), mas bem antes, e que continuam a ter consequências na vida daqueles a ponto de, 20 ou 30 anos depois, serem relembrados e ainda provocaram dor nas cicatrizes deixadas.
Skye elabora um retrato empático de Sharon em um evidente caso que poderia ser espetacularizado, e não é. Detrás da maquiagem dos fatos, há o feminicídio, o abuso sexual contra a mulher, o sufocamento do pedido de socorro, e Skye não tenta explicar por que Sharon não procurou ajuda quando pôde, pois não está na posição de julgá-la. Apenas de demonstrar solidariedade. O retrato é agridoce: a estudante que sonhava em ser engenheira aeroespacial e que terminou como vítima de um homem opressor, cuja maldade se acentua à medida que a história avança e as lacunas começam a ser ocupadas pela verdade. Um misto do bom trabalho policial dos investigadores e da lembrança de quem municiou informações indispensáveis àqueles.
É difícil ir além sem revelar as surpresas reservadas pela narrativa, cuja direção ainda encontra algo bom em que se apegar ao seu desfecho. Óbvio, não apagará a tragédia que cerca as ações de Franklin, apesar de encerrar com notas amenas e recolocar o nome na lápide de quem poderia ser esquecida como uma Fulana de Tal.
A GAROTA DA FOTO está disponível no catálogo da Netflix.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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