E se o ente querido despertasse / ressuscitasse?
Certas histórias apresentam-se como sementes que, regadas com carinho, possibilitam ao espectador refletir acerca das ramificações dessa árvore. Ela e Eu é um exemplo de cinema semente: o acontecimento central que modifica o dia a dia da família é também o ponto de início para que pensemos além daquilo filmado pelo diretor e roteirista Gustavo Rosa de Moura (de Canção da Volta). É como se a narrativa, conscientemente ou não, oferecesse a chance de o espectador projetar dentro da história razões que expliquem o porquê e o não visto, mas deduzido, e preencher as lacunas sugeridas. Assim, o cinema não se exaure na reação aos estímulos sensoriais audiovisuais, mas na codificação que fazemos da realidade dentro de nossas cabeças a partir de nossas visões de mundo e experiências.
Ela e Eu é um exercício de pensar o cinema de dentro para fora, afora só absorvê-lo, como o diretor, que interpreta o professor do curso de medicina e é figura de autoridade, defende em certo momento. O roteiro, escrito pelo Gustavo, Leonardo Levis e Andrea Beltrão, com a colaboração de Eduardo Moscovis, Mariana Lima, Luisa Arraes e Larissa Kurata, inicia com o nascimento de Carol e, ato contínuo, o apagamento de Bia (Beltrão) no abismo do coma. O mundo continua a se desenvolver ao redor da tragédia como as árvores também fazem: décadas depois, Carol (Tremouroux) já está na faculdade de medicina; o ex-marido de Bia, Carlos (Moscovis), casou-se com Renata (Lima), que Carol chama de mãe. Bia é um ícone ou uma imagem mantida dentro de casa, objeto de devoção da família, até deixar de ser.
Certo dia, sem razão aparente, senão se inferirmos pelas imagens cotidianas anteriores, Bia movimenta o olhar em direção à cuidadora Sandra (Teles). Enquanto o público acompanha o ponto de vista refratário e confuso de Bia, que tenta se ajustar à realidade de que havia sido arrancada, também percebe a modificação que o despertar provoca na família. Aquele ícone passa a ser uma criança dentro do lar, que reaprende a andar, falar, a perceber o mundo ao redor , exige a atenção, paciência e sacrifício dos membros e ainda a suspensão de suas vidas: Carol toma a decisão radical de trancar a faculdade a fim de se dedicar àquela mulher que a gestou e que teria chamado de mãe pelo restante da vida se não fosse o destino desejar o contrário; o relacionamento de Carlos e Renata é abalado por esse modelo de família não previsto. A atração de Carlos pela ex-esposa não é sexual, mas platônica e hipotética, o que acentua a frustração de Renata.
As questões apresentadas na narrativa têm alergia a respostas imediatas e fáceis, porque como conciliar o ente querido ressuscitado dentro de um cotidiano de que não participava? A melhor decisão da trama é tornar Bia o centro de gravidade que atrai os personagens a seu redor, de tal maneira que a vida está em suspensão longe dela: Carol e a namorada, Giovanna (Ellen), enfrentam problemas não explicitados, mas implicados. Podemos supor o que as afasta – a dedicação de Carol à Bia – e a emoção reproduzida através da atuação, e não o teor da discussão ou o desenrolar dos eventos, que habitam somente no imaginário do espectador (de dentro para fora, lembram?).
Mais interessante é perceber como Andrea Beltrão transforma Bia em criança, às vezes birrenta, a ponto de utilizar a percepção daqueles ao redor para cometer travessuras. O alvo de Bia é Renata, não porque o roteiro deseja retratar a disputa ególatra de mulheres pelo homem (ainda bem que não), e sim por enxergar a esposa do ex-marido como alienígena ou não pertencente, aquela que viveu o que deveria ter vivido. A provocação é a frustração de não ter visto Carol crescer ou ser aprovada na faculdade, é não ter transado no sofá de casa com o marido após um jantar. Renata representa aquilo que o coma negou. Talvez por isto, a conclusão tenha me desagradado por tornar simplificada a complexa teia de mágoas e emoções, por uma decisão e também um acontecimento da ordem que o introdutório.
A direção é amena, tal como descansar na praia durante a primavera e assistir às ondas do mar quebrarem à distância, e trabalha o drama de forma íntima e minimalista, embora haja momentos em que a emoção transborda com maior intensidade. Gustavo evita a armadilha do drama imediatista de fora revelado em alegria, tristeza, sorrisos e choros, e opta pelo de dentro, criado no silêncio de Carlos enquanto trabalha no ateliê ou no escapismo de Renata ao sair com os colegas de trabalho ou na trilha sonora. É menos acerca do artifício – o mural do Rio de Janeiro que se revela menor quanto mais a câmera se movimenta para trás – e mais sobre as possibilidades que o cinema pode provocar dentro de nós quando pensamos e nos envolvemos com os personagens e as situações criadas.
Talvez Ela e Eu pudesse se chamar Ela e o Espectador porque força a enxergar para além da tela, de atuações discretas e do drama intimista para o interior de si, com a companhia das vidas que o cinema cria.
Ela e Eu está em exibição nos cinemas
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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