Scott Derrickson volta às origens e atinge o auge de sua carreira demonstrando um domínio total sobre as características do gênero que o consagrou.
Por Thiago Beranger.
O terror possui múltiplas facetas, diversos subgêneros e uma infinidade de possibilidades de abordagem. Nos últimos anos determinado “tipo” de terror vem sendo tido como superior por alguns críticos e principalmente pelo público que vê mais valor em narrativas metafóricas do que em trabalhos que se caracterizam por uma maior frontalidade em relação às suas escolhas estéticas e temáticas. Sim, estou falando do famigerado (e inexistente) “pós-horror”, mas não é sobre ele que quero me aprofundar. Pelo contrário. Quero falar sobre um cineasta que rema contra a corrente. Scott Derrickson sempre fez diferente, buscando desde o início da sua carreira trabalhos que dialogassem com uma estética mais acessível.
De “Hellraiser V” (2000) – que confesso nunca ter visto – até seu novo lançamento foram sete longas, com destaques para os razoáveis “O Exorcismo de Emily Rose” (2005) e “Livrai-nos do Mal” (2014) e para o bom “A Entidade” (2012). Em que pese nunca ter realizado um grande filme, os trabalhos de Derrickson sempre foram muito competentes em construir tensões, ambientes e climas que remetem ao terrorzão sobrenatural popular dos sustos, dos fantasmas aterrorizantes, das possessões demoníacas, daqueles que todo mundo assiste e fica uns dias sem dormir.
Depois de uma pausa na sua carreira autoral para dirigir na Marvel Studios o primeiro “Doutor Estranho” (2016), Scott volta ao seu gênero de origem trazendo ao mundo “O Telefone Preto”, filme baseado no popular conto homônimo de Joe Hill (filho de Stephen King) e parece ter atingido o auge da sua maturidade como realizador até então. O longa é conciso ao reunir o que de melhor há no cinema de seu diretor em uma trama reduzida e até simples demais, mas que não deixa de impactar pela maneira com a qual é construída.
Pra quem se diverte com jumpscares, por exemplo, o filme é um prato cheio. Aqui o recurso não serve como mero estímulo imediato, mas sim como um modulador da tensão, usado para manipular as expectativas e conduzir o espectador através da narrativa, fazendo com que a gente sinta exatamente o que o diretor quer. Muitas vezes, o jumpscare não é seguido de um respiro aliviado como seria comum, mas de momentos ainda mais tensos. Normalmente planos impactantes pelo medo que proporcionam: ou as imagens fantasmagóricas das vítimas do “Sequestrador” (Ethan Hawke) com suas feridas abertas e deformações ou o próprio vilão em situações sinistras.
O som é algo importante em toda essa construção climática. É absolutamente agoniante ouvir o telefone tocar, mesmo que ele não signifique propriamente uma ameaça. O som estridente é sempre o que tira o protagonista da inércia. O que movimenta a trama e prepara o próximo momento aterrorizante. É curioso que mesmo o telefone sendo uma ajuda para que Finney (Mason Thames) escape do cativeiro, preferimos que ele não toque porque isso significa ter que enfrentar um novo encontro com “O Sequestrador” ou um novo momento tenso entre o protagonista e seus aliados de outro mundo.
Aliás, o próprio fato de as assombrações no filme serem na verdade aliados e não ameaças acaba também tornando “O Telefone Preto” diferente da maioria dos filmes do gênero. Aqui o sobrenatural sempre ajuda, seja ele manifestado através dos fantasmas ou da clarividência da irmã do protagonista Gwen (Madeleine McGraw). É a fantasia vista através do olhar infantil em contraponto com a crueldade do mundo real que se manifesta nos personagens adultos. Isso vale para o grande vilão ou para Terrence (Jeremy Davis), pai abusivo e violento do par de personagens principais, que enxerga no dom de seus filhos uma maldição.
A ideia de que crescer é perder a capacidade de contato com uma dimensão fantástica da realidade é reforçada pelo discurso dos adultos, que sempre tratam o sobrenatural como uma besteira infantil. Basta lembrarmos que o próprio “Sequestrador” chega a dizer que quando criança também pensava ouvir o telefone tocar, ou na relação de Terrence com as visões de sua filha, sempre resultando em agressões físicas. Mais do que perder o contato com a fantasia, crescer em “O Telefone Preto” é sinônimo de violência. Isso permeia o filme todo e culmina no desfecho quando esse é o recurso encontrado por Finney pra se desvencilhar de seu captor.
Outro elemento subversivo que se revela na mise en scene é toda a construção espacial do cativeiro onde a maior parte do filme se passa. Quando pensamos em um cativeiro de filme de terror a imagem que vem à mente provavelmente é a de um local apertado, claustrofóbico, filmado em planos fechados que ressaltem essa característica e nos façam sentir sufocados. Derrickson escolhe o caminho contrário, transformando o porão da casa do vilão em um ambiente amplo e vazio, em contraponto à pequenez do protagonista. Todo esse espaço engole Finney e evidencia a sua fragilidade e isolamento, tornando o filme uma experiência desoladora. Ele pode se movimentar livremente, pode tentar diversas estratégias para escapar, o que alimenta uma esperança que leva até o último momento para se concretizar.
“O Sequestrador” é um carcereiro que dá uma aparente liberdade às suas vítimas para que possa castigá-las por suas próprias escolhas. Ele sente prazer justamente em agredir as crianças por serem “meninos levados”, aproximando-o de uma figura paterna punitiva que disciplina através da violência. Essa figura era muito comum no período em que o filme se passa e até hoje reverbera nas relações familiares. Sempre ouvimos relatos de violência parental vindos de pessoas mais velhas ou vivemos intimidação parecida com o comportamento de nossos próprios pais. O filme evidencia isso dando ao vilão uma personalidade passivo/agressiva e aproximando-o do pai das crianças através do método de punição escolhido por ambos: a surra com um cinto de couro.
Também é interessante observar a própria caracterização do vilão. Se pensarmos bem, ele é até bastante genérico. Não sabemos muito sobre sua história, sobre seu background, sobre os fatos que o levam a cometer os sequestros e assassinatos que comete. Apesar disso, o personagem é construído de maneira extremamente intimidadora através de dois elementos principais. O primeiro é o porte físico – Ethan Hawk aparece gigantesco nos momentos em que está sem camisa, à espreita de Finney na cozinha de casa – a imagem da virilidade masculina que entra em consonância com essa figura paterna ultrapassada. A segunda é a máscara bem característica, que complementa o processo de despersonalização do “Sequestrador” (que aliás, também não tem um nome), ao mesmo tempo em que constrói uma imagem icônica que faz referência a outras figuras conhecidas do cinema de horror (Leatherface, Michael Myers, Jason, Ghostface, etc).
Dessa forma Scott Derrickson dá uma aula de como não se precisa atrelar necessariamente o aspecto metafórico a uma narrativa pseudocult, que dê ares intelectuais à sua trama. Muito pelo contrário, o subtexto pode existir estando ligado a um terror que não tem medo de lidar com as características mais vulgares do gênero e que faz questão de homenagear trabalhos que vêm aterrorizando o imaginário popular há anos e anos.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.
2 comentários em “O Telefone Preto”
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Bom dia! Vi o filme o Telefone Preto. Achei super interessante o enredo e a atuac,ao de todos foi excelente. Apesar das cenas fortes, recomendo o filme que trata questoes importantes como: inf^ancia, dons espirituais, sobreviv^encia e perigos que as crianc,as tem que passar. Nao eh de jeito nenhum um conto de fadas mas… prende do in’icio ao fim e como sempre com as crianc,as e as suas capacidades incr’veis de sobreviv^encia.