Tenha medo dos vivos, não dos mortos
A ideia de que espíritos ou fantasmas sejam antagonistas maléficos dos vivos está enraizada no cinema de terror. Com menor frequência, essas entidades são trabalhadas como seres mal compreendidos, com pendências que os mantêm presos ao plano material (O Sexto Sentido é um exemplo instintivo). Nestes casos, cabe aos vivos desatar esses nós e devolver a paz aos mortos. Diferente dessas abordagens, a de O Telefone Preto rejeita enxergar os mortos como monstros, enquanto lhes confere a capacidade de ajudar o protagonista a sobreviver à ameaça do assassino interpretado por Ethan Hawke. Além de essas entidades serem benevolentes, por altruísmo ou vingança, são as que auxiliam, não as que dependem de ajuda, na subversão desta figura dentro do cinema de terror.
Ainda assim, o diretor e roteirista Scott Derrickson, a partir do conto escrito por Joe Hill (filho de Stephen King), brinca com a ideia de que espíritos ou fantasmas podem ser monstros. Faz isto a partir de um movimento de câmera, produtor de um sobressalto (o jump scare), que estilinga a alma do espectador para fora do corpo com a força do grito, ao revelar a materialização das entidades ao espectador. Contudo, não demora até percebermos que só parecem monstros por culpa de nosso olhar, que assim os enxerga assim. Com isto, O Telefone Preto devolve ao vivo a face da maldade – revelada com chifres e riso diabólicos da máscara utilizada – e, aos mortos, a condição de suas vítimas. Estes não nos assombram, são assombrados pela desumanidade de um sujeito mau e cruel.
O roteiro viaja à típica cidade americana dos anos 70 – época em que iniciou o cinema slasher, quando assassinos mascarados puniam jovens com requintes de crueldade -, e o palco de uma série de crimes sem solução: o desaparecimento de adolescentes, levados no interior de uma van por um homem com balões pretos. A mais recente vítima é Finney (Thames), garoto de 13 anos, preso dentro de um porão à prova de som e que recebe ligações das vítimas passadas do assassino, que tentam ajudá-lo a superar o agressor com ações e atitudes úteis. Como citei, a motivação deles é a vingança, mas há o altruísmo de quem deseja que Finney supere o seu medo e escape com vida. Ao mesmo tempo, a irmã de Finney, Gwen (McGraw), sonha pistas sobre o seu paradeiro, revivendo a habilidade que teria resultado no suicídio da mãe (o dom premonitório).
Scott Derrickson tem habilidade em misturar o real e o sobrenatural: em O Exorcismo de Emily Rose, utilizou como base o thriller de julgamento; em Livrai-nos do Mal, o thriller de assassinos em série. Outra vez, emprega um gênero “pés no chão” e o expande em direção ao terror. No processo, realiza uma crítica à espetacularização e origem da violência. A partir do bullying e da defesa do agredido contra o agressor, o diretor ilustra o fascínio do espectador da violência: jovens criam uma roda para assistir, sem interferir, na briga entre colegas de colégio que tinge de vermelho a paleta de cores acinzentada da narrativa. Esse ato é repetido mais a frente, do lado de fora da loja de conveniência onde há uma máquina de pinball. A violência é o espetáculo trabalhado pelo diretor como a matéria prima que envolve o espectador a torcer pelo herói para que puna o vilão com a mesma virulência com que seria violentado. Desse modo, Scott Derrickson cria um diálogo com o excelente Funny Games, de Michael Haneke, pois se nele o diretor austríaco questionava por que nos importávamos tanto com a família vítima de violência, aqui Derrickson compreende que não aspiramos à justiça, mas ao espetáculo do justiçamento. E que fazemos isso desde crianças.
A violência é componente do ser humano desde cedo e é a prática dessa violência, empregada para o que a narrativa acredita ser o bem, que concede segurança e confiança aos personagens para serem acolhidos e respeitados dentro do ecossistema escolar. Não é que Scott Derrickson acredite nisto, é que utiliza a violência como forma de criticar a sociedade que a internaliza como forma de amadurecer de Finnie para Finn.
Por essa razão, O Telefone Preto, como em trabalhos anteriores do diretor, traz a presença da mídia analógica e digital, explícita ou implicada na forma cinematográfica: os sonhos de Gwen são retratados como documentários fotografados de maneira áspera e granulada e a televisão desempenha o papel de preencher os espaços no convívio da sociedade com sensacionalismo e violência. As figuras de autoridade ou são omissas – exemplo do pai interpretado por Jeremy Davies, de Lost, apresentado e desenvolvido através da ausência – ou negligentes – a polícia é inútil ou perto disto.
Sobram às crianças a tarefa de organizar as regras da sociedade escolar em que vivem e se protegerem do maníaco que as persegue, interpretado com o habitual talento de Ethan Hawke e um aceno a Michael Myers e Jason Vorhees, na forma como cultuam a imagem que criaram para si na máscara que cobre seu rosto. É a atitude coletiva, não individual, que ajuda Finnie a permanecer vivo dentro de uma circunstância extrema, a qual Scott Derrickson desenvolve com competência seja na hora de introduzir sustos, seja na hora de criar a atmosfera macabra que envolve a narrativa. Não há a necessidade de explicação do motivo do vilão ser quem é, nem a razão de o telefone ser o conduíte entre o mundo material e o sobrenatural.
Enquanto isso, o desenvolvimento da narrativa adota uma estrutura de fases, criando a ideia de imediatismo e proximidade do inevitável embate, enquanto, naquele que é o maior pecado da narrativa, cria ainda a eventual sensação de conforto por saber de quem poderá ser a ligação seguinte. Conforto é do que menos precisamos em um thriller de terror como O Telefone Preto, mas a ponto de prejudicar um trabalho que desafia convenções e identifica o autor (os vivos, não os mortos) e também a razão de tamanha maldade: o nosso olhar doentio e atraído para a violência como mariposas em direção à luz.
Leia também a crítica de Thiago Beranger sobre o filme: clique aqui.
O Telefone Preto está em exibição nos cinemas brasileiros!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “O Telefone Preto”
Pingback: Reviews: The Black Phone (2022) – Online Film Critics Society