O herói em busca do sentido da vida
Dos heróis da Marvel, Thor é o que teve as mudanças mais drásticas de abordagem (e cabelo) dentro de sua série de filmes e o que menos pôde lidar com as consequências das perdas que acumulava: dirigido por Kenneth Branagh, o loiro Thor abraçava a linguagem clássica para retratar a mitologia nórdica como se estivesse adaptando William Shakespeare; Thor: O Mundo Sombrio nasceu com contornos sombrios e o desejo não realizado de Alan Taylor de incorporar as maquinações e motivações de Game of Thrones dentro de um filme que já trazia um humor desconcertante e, então, inconveniente para a personalidade do herói; Thor: Ragnarok abandonou a escuridão dos antecessores em favor da explosão de cores, estímulos, humor e irreverência do diretor Taika Waititi, que pôde repetir a dose em Thor: Amor e Trovão, a primeira oportunidade em que o fã da Marvel pode saber o que esperar estilisticamente do herói.
O roteiro co-escrito por Taika e Jennifer Kaytin Robinson aproveita o prólogo para apresentar o novato da série, o antagonista Gorr (Bale), um ser de aparência cadavérica, pálido, vestido de trapos e que cheira à morte, ressentido com os deuses por não terem salvado a sua filha quando este clamou por isto e que agora carrega uma espada mágica que lhe conferiu a alcunha de o carniceiro dos deuses. Os motivos que o levam a Thor obriga o espectador a se questionar por que Asgard é tão especial, ou apenas aceitar esta conveniência do roteiro. Depois, o roteiro apresenta a atual formação dos Guardiões da Galáxia após os eventos de Vingadores: Ultimato, com a disputa de egos entre Thor e Senhor das Estrelas, com vantagem ao Deus do Trovão: um viking espacial zen combinado com astro de rock, a la George Harrison, que, ao som de Only Time de Enya, derrota sozinho o exército inimigo que ameaça uma sociedade alienígena.
Apesar da vitória, Thor está vazio e, para buscar sentido na vida, abandona os Guardiões da Galáxia assim como a Marvel tem feito com a continuidade de algumas cenas pós créditos que fazem os espectadores gritar de expectativa para o que virá a seguir. O subdesenvolvimento ou descarte destas cenas carregadas de potencial serviço aos fãs é a prova de que a construção teórica do universo compartilhado não é tão simples quanto na prática de contar histórias, pois não é a quantidade de referências ou personagens a chave do êxito, mas a qualidade com que são empregadas e desenvolvidas. E a sorte da narrativa é que Taika Waititi é hábil em contornar o ponto crítico do roteiro com elegância: o retorno de Jane Foster (Portman) à série após ser cortada em Thor: Ragnarok e na série Vingadores.
A direção apela à dupla figura de contador de histórias: detrás das câmeras, Taika reproduz os fatos visualmente com a mesma liberdade de Ragnarok. E, à frente das câmeras, como Korg, conta a história como se reunisse jovens asgardianos ao redor da fogueira e lembrasse das lendas da mitologia de sua região – hoje reduzida a um resort turístico na Escandinávia e presidido por Valquíria (Thompson, sem muito o que fazer). Com a figura de narrador dentro da história, Taika simplifica a arte de contar histórias ao mínimo necessário, enquanto a seleção de canções – de Guns ‘n Roses a ABBA – realça uma atmosfera vibrante e romântica da narrativa. É como assistir à narrativa em dupla dimensão, de espectador e de ouvinte: em cada uma, a mão de Taika Waititi acentua o absurdo e a irreverência do que assistimos, além de oportunizar a releitura de certas sequências, a exemplo daquela em que Gorr encontra seu deus e a espada amaldiçoada: a cena é como um oásis que pode ou não ser materialmente real, mas cujo efeito e consequência finais são palpáveis.
Contudo, é o tema da fé (ou a falta dela) a parte mais atraente desta continuação, pois, sem exceção, os personagens centrais ajoelham-se diante do altar dos deuses por aquilo que não podem fazer sozinhos: não somente Gorr, cujo pedido sequer é ouvido e motiva sua vingança, mas também Jane junto à magia do Mjolnir, as crianças asgardianas raptadas enquanto aguardam o salvamento e o próprio Thor, na Cidade da Onipotência a frente de Zeus (Crowe, que arrisca o sotaque grego com êxito). A ideia de que a multidão de deuses está surda ao clamor dos seus, enquanto realizam orgias e demonstrações de narcisismo e opulência, é contra exemplificada por Thor. Apesar de imaturo e vaidoso, justo por ser herói, Thor atende os pedidos de socorro e se coloca a serviço como os deuses parecem incapazes. Isto cria um dilema não exposto em palavras, mas sim na atuação de Christian Bale, em como Gorr enxerga em Thor o que não havia visto no deus que carregava em seu medalhão.
Enquanto isso, o humor é abundante e em múltiplas vertentes: é ingênuo na confusão do nome de Jane com Jane Fonda ou Jodie Foster; é irreverente em como Thor transforma o machado Rompe Tormentas em uma vassoura de bruxa ou nos momentos de ciúme da arma; é repleto de brincadeiras visuais, como os deuses reunidos no templo dourado – um deles, um inusitado vencedor do Oscar… de melhor curta de animação – ou as crianças que parecem ter saído de A Cidade dos Amaldiçoados (1995). Não que Thor: Ragnarok não tivesse feito o mesmo, mas agora há coerência e unidade em como o humor está presente dentro do filme que revela que o gênero de super-heróis alcançou a etapa da auto paródia e irreverência do faroeste spaghetti de Terrence Hill e Bud Spencer.
Até porque não há adversário no universo que possa fazer frente em matéria de força ao poderoso Thor, cujo espacate rivaliza com o de Jean-Claude Van Damme, ainda mais ao lado da igualmente poderosa Thor, uma homenagem ao alter ego Donald Blake somente referenciado por Kenneth Branagh no original. Se a originalidade nos efeitos visuais computadorizados ou nas cenas diretas de ação já estava tão escassa quanto o deserto por onde caminha Gorr no início, Taika Waititi encontrou um oásis ao apelar ao elemento emocional e ao senso de humor. Este investimento surtiu efeito nesta comédia de fantasia consistente e acima da média.
P. S.: Thor: Amor e Trovão tem duas cenas pós-créditos e, infelizmente, a segunda reduziu, ao menos para mim, parte do envolvimento emocional que tive com o destino de um personagem.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.