Marcélia Cartaxo parte em busca do filho desaparecido
Meu primeiro contato com o diretor Cristiano Burlan foi através do documentário Mataram meu Irmão (2013), em que reconstrói o assassinato do irmão, Rafael, e as consequências do crime à família. Mais tarde, Burlan revelou a impunidade da maquina estatal e exorcizou o luto pelo assassinato da mãe, Isabel, mediante o trabalho doloroso Elegia de um Crime (2018). A dupla de documentários é acompanhada por Construção (2006), que eu ainda não vi, em que Burlan reflete em torno da morte do pai.
Tendo a morte e o luto entranhado-se e encontrado um abrigo dentro da vida e, por certo, da filmografia de Cristiano Burlan, não é surpreendente o comportamento resiliente e niilista de Maria em A Mãe, que é o alter-ego do diretor caso este pudesse ser mãe e tivesse o filho arrancado de perto de si. A partir da jornada da vendedora ambulante Maria (Cartaxo), depois do desaparecimento do filho Valdo (Farias), a direção reabre a ferida da perda do ente querido e cutuca com o dedo, até sair o pus acumulado pela ação ou omissão da máquina estatal através de suas polícias.
Burlan realiza um cinema de aproximação, e que repetirá na cena final. A câmera em plano aberto é reveladora do microcosmos da periferia, desconhecido da classe média e alta, na caminhada de Maria ou Valdo que revelam a marginalidade, a sujeira, o descaso, o obsceno abandono de parte da sociedade desprezada pelo Estado. A câmera aberta é também uma oportunidade para que o diretor aproxime-se da mãe solo e do filho, metonímias de arquivos policiais e de notas de rodapé dos jornais, de pessoas cuja existência, ou não, é indiferente e se desumaniza em estatísticas e números.
Perto de Maria – cujo nome confere universalidade à história -, a câmera investiga a ação e o comportamento da mãe para encontrar o paradeiro do filho. Não é uma noite de ausência que desperta a preocupação materna, pois não deve haver sido a primeira vez que Valdo não passou a noite no quarto dividido com Maria. Entretanto, apenas de pensar que a noite anterior pode ter sido a derradeira aperta o coração dentro do peito. Logo, Maria está na rua do bairro, inquirindo a vizinha Lúcia (Tullani), mãe do melhor amigo do filho, Jonas, ou na polícia militar e civil, apesar de contra-avisada por Alemão, o chefe do crime da imediação.
Maria não é uma personagem do cinema americano, em que a resposta a estas questões tende a ser encontrada na prática da justiça com as próprias mãos. No Brasil, há pouco que se pode fazer salvo resistir e conservar a esperança. A compleição frágil da atriz Marcélia Cartaxo afirma a impotência e vulnerabilidade da personagem diante da polícia, do crime organizado, de Lúcia – embora não possa ser julgada, pois age como as mães agiriam nesta mesma circunstância. Apenas a estranha no ônibus ajuda Maria, pois às vezes basta dar a mão para confortar. Maria não tem ninguém senão memórias resgatadas nas roupas do filho.
O que a fisionomia de Marcélia não revela é a força e coragem, expostas recentemente em Pacarrete (para alguns, a porta de entrada no cinema da atriz). A busca de Maria, elíptica e episódica, com algumas lacunas deixadas para o preenchimento do espectador, colocam-na diante de instituições públicas cúmplices e, possivelmente, autoras do crime, já que a busca dela a aproxima das Mães de Maio, o coletivo de mães que tiveram os filhos assassinados pelo terrorismo estatal, inspirado no grupo similar na Argentina, As Mães da Praça de Maio, que enterraram filhos vítimas de crimes da ditadura no país. Cristiano Burlan encontra nelas a combatividade e a resiliência que também o acompanham.
A participação do grupo educa Maria a entender que a luta é coletiva e não individualista, aspecto reforçado na gargalhada ao descobrir que o cadáver no Instituto Médico Legal não era de Valdo. A risada misturava alívio, desespero e indiferença ao ignorar que, sobre a maca, está o filho de uma mãe, que pode estar em idêntica situação.
Entretanto, a direção não tem a mesma sorte na cena final explícita e expositiva. Pois, apesar de Cristiano Burlan manter-se fiel à realidade social que apresenta, é injusto com a protagonista Maria. Como o combustível emocional dela era a incerteza do paradeiro de Valdo, que desejava reencontrar, nem que fosse morto, a apresentação de informações por ela desconhecidas, mesmo que pudesse sentir, trai esta personagem de modo parecido com que as instituições traíram o pacto social.
Crítica publicada durante o 50º Festival de Cinema de Gramado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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