Épico produzido e estrelado por Viola Davis apresenta as mulheres guerreiras que inspiraram as Dora Milaje de Pantera Negra
A internet popularizou o adjetivo épico como sinônimo de memorável ou fantástico para classificar aventuras de super-heróis de encher os olhos do espectador, adotando o termo utilizado para designar o gênero cinematográfico de Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Gladiador e Coração Valente. Estes épicos são aventuras históricas e heróicas, com recriação cuidadosa de época, figurinos e cenários e cenas de ação ambiciosas, em que uma pessoa ou um grupo de pessoas enfrenta uma estrutura opressora na forma de leis ou de estados soberanos.
Entretanto, se você pesquisar na história do gênero, não encontrará épicos protagonizados por pessoas negras porque a indústria tratou de apagar sua história e seu heroísmo. Se O Nascimento de uma Nação (2016) apresentava o verniz da narrativa épica, A Mulher Rei é que melhor aproveita a característica do gênero ao trazer a história das Ahosi, as guerreiras do Reino do Daomé, que inspiraram as mesmas Dora Milaje de Pantera Negra (2018). Alvo de boicote devido a alegada falta de autenticidade da participação das Ahosi no combate à escravidão do povo africano pelos europeus, a trama inicia quando a jovem Nawi (Mdebu), depois de rejeitar o casamento arranjado pela família, é entregue ao exército liderado por Nanisca (Davis).
O roteiro de Dana Stevens emprega o recurso da personagem alienígena (Nawi), a fim de reproduzir o olhar desbravador do público ávido a conhecer o funcionamento e a dinâmica daquela comunidade regida pelo Rei Ghezo (Boyega), cuja confiança irrestrita na liderança de Nanisca a torna a monarca do exército de mulheres guerreiras. As Ahosi são a tropa de elite e linha de defesa contra o império em expansão de Oyo, cuja riqueza decorre da venda de homens e mulheres capturados ao comércio de escravos europeu, contra o qual Nanisca se coloca frontalmente. Ao invés de prosperar com a exploração do próximo, por que não com o comércio de óleo de palma?, propõe Nanisca. É uma proposta recebida com desconfiança e reticências pelo Rei.
Dessa forma, enquanto Nanisca, ao lado de Amenza (Atim), administra questões políticas e organiza a investida contra Oyo, Nawi é adotada sob as asas da guerreira Izogie (Lynch), que respeita e com quem aprende o que significa ser Ahosi. O design de produção de Akin McKenzie reconstrói o reinado de Daomé no ano de 1823, com figurinos rústicos costurados a mão, espadas e machetes de lâminas irregulares e penteados remissivos à personalidade das guerreiras. Enquanto isso, as coreografias de luta e a recriação da época compensam o desenvolvimento mais preguiçoso dos personagens e das subtramas: Amenza é a mulher sábia e política; Izogie, a brava e corajosa; Nawi, ingênua, embora moderna na utilização da pólvora; Nanisca, a líder honrada e de expressão fechada (a mulher badass, se preferir). As subtramas também não inspiram suspiros: há o romance entre Nawi e o escravagista pardo mas arrependido, ou a relação dela com Nanisca, com toque de rebeldia e insubordinação.
Também desgosto de como a direção de Gina Prince-Bythewood (de The Old Guard) adota o idioma que não o inglês para retratar o Outro, ou o inimigo, porque isto parece caminhar contra o tema narrativo de união contra o invasor europeu, que teria plantado a semente da desunião entre os povos do continente africano. Inclusive, repare em como a direção mostra os cadáveres negros no chão como símbolo da quantidade de vidas mortas para subsidiar um comerciante imoral e criminoso não importa em qual época que seja.
Em contrapartida, gosto de como a narrativa trabalha a igualdade entre homens e mulheres como princípio de fundação de Daomé, governado no mito por regentes de sexos opostos. Não precisa ser profeta para antecipar para onde a narrativa guiará o público, até porque o título não esconde esta ambição, mas é interessante em como há contradições esculpidas na submissão da Ahosi ao Rei Ghezo e na existência de exércitos rivais, que disputam a frente das ações de Daomé antes de entenderem que precisam se unir contra um inimigo em comum.
Ainda que A Mulher Rei não seja historicamente fiel, tampouco foram os épicos citados no parágrafo inicial, que também possuem sua parcela de reinvenções e omissões, e apresentam narrativas irregulares e elementos questionáveis. Assim, apesar de irregular e de às vezes incoerente, não há como ignorar o acréscimo do intenso e envolvente A Mulher Rei na tradição do gênero épico que enfim tem a oportunidade de contar as histórias que antes não pudemos conhecer.
A Mulher Rei estreia nos cinemas quinta-feira, 22 de setembro.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Cinema de Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “A Mulher Rei”
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