Uma biografia sensível sobre o papel da família no amadurecimento de sua protagonista
Quando em Festivais de Cinema, há dias em que você encara a programação e nota um buraco de algumas horas e pensa “por que não” antes de entrar noutra sessão de cinema de filme que não havia planejado assistir a princípio. Isto aconteceu em North of Normal, a obra escrita e dirigida pela canadense Carly Stone, baseada na autobiografia da ex-modelo Cea Sunrise Person, na qual detalhou o crescimento na família heterodoxa e envolvida com o movimento de contracultura, a relação com a mãe e o processo de amadurecimento.
A história inicia com a decisão do avô Dick (Robert Carlyle) de se mudar com a família para o interior das florestas canadenses, acompanhado da esposa (Janet Porter) e da filha grávida Michelle (Sarah Gadon, de Alias Grace), que dará à luz a adorável Cea (River Price-Maenpaa, na infância, e Amanda Fix, na adolescência). A família entretém convidados adeptos deste estilo de vida, até que, eventualmente, a existência idílica rui quando Dick e a esposa rompem e Michelle deixa o acampamento, ao lado do namorado, com o sonho de levar uma vida normal com água encanada, aquecimento e teto sobre a cabeça.
Após concluído o trecho Capitão Fantástico encontra Na Natureza Selvagem, que parecia ditar a tônica da narrativa, North of Normal proporciona o retrato autêntico do crescimento de Cea diante das cartas que a vida ofereceu para si. Muito disso em função da relação com a mãe, cuja fuga é somente o ponto de partida de decisões que, em análise derradeira, ignoram o bem-estar da filha. Não que Michelle aja com maldade, é que a vida levada não a capacitou a enfrentar obstáculos diante de si e a tornou dependente dos homens com que se relaciona (o pai a princípio; agora, os namorados). Cea se opõe ao relacionamento com o personagem interpretado por James D’Arcy, casado, embora tenha feito a promessa de deixar a esposa.
O que há de melhor na adaptação de Carly Stone e, creio, herdado da autobiografia, é a capacidade de olhar para trás sem que haja julgamento ou condenação da família. Apesar de Cea aprender que pode ser melhor estar sozinha do que estar com a mãe, àquela época despreparada para a maternidade. O naturalismo realça as hipocrisias familiares, apesar de não apagar o amor genuíno entre os membros da família: Dick, um antissistema e adúltero, critica a esposa por agir como havia pregado agir; Michelle, com o direito de perseguir seus sonhos e sua felicidade, não enxerga ou não quer enxergar os abusos sofridos por Cea.
Existe uma dicotomia narrativa entre a intenção e a consequência capturada na fotografia de David Jones. O diretor de fotografia expõe, sob uma paleta de cores calorosa, a floresta como uma memória da infância retirada de um álbum de fotografia, antes de esfriar e lavar as cores da narrativa ao chegar na cidade. Enquanto isto, a montagem de Orlee Buium substitui o desenvolvimento linear e cronológico por uma reestruturação do tempo, com a re-interpretação de eventos passados sob lente diferente ao serem revisitados.
A propósito, graças à montagem pressuposta pela decupagem da diretora Carly Stone, que as imagens do passado e do presente podem dialogar entre si, seja durante uma viagem de carro com início no ontem e fim no hoje, seja em como os olhares de Michella e Cea se encontram, embora separados no tempo, através da magia do cinema e da memória. Sarah Gadon reafirma a sensibilidade dramática da minissérie Alias Grace, agora escondida atrás de uma fisionomia frágil e da obediência às regras estabelecidas pelos homens com que se relaciona. Enquanto River Price-Maenpaa é uma atriz-mirim adorável, capaz de ilustrar com facilidade a inocência de Cea dentro de um mundo não inocente, Amanda Fix é ainda mais eficiente em trazer a angústia da protagonista ao primeiro plano, inclusive quando revisita o abuso que sofreu.
Nesse aspecto, North of Normal evita as armadilhas do cinema independente e para criar uma história de amadurecimento que mistura momentos felizes e pitoresco com verdades ásperas e traumas dolorosos, sem amaldiçoar a sorte (ou o azar), mas os aceitando como parte indissociável da mulher que a protagonista se tornou e que, generosamente, expôs ao espectador como matéria prima para reflexão e entretenimento.
Não há previsão de estreia de North of Normal nos cinemas brasileiro ou no serviço de streaming
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.