Margaret Qualley está em chamas em um thriller que discute o poder da atuação
Margaret Qualley, filha de Andie MacDowell, é uma atriz jovem destinada a alcançar o topo da carreira nos próximos anos. Com ambição e escolhas inteligentes de papéis, Margaret já trabalhou com o diretor Quentin Tarantino (em Era uma Vez em… Hollywood) e a renomada diretora francesa Claire Denis (em Stars at Noon); também passeou na comédia dramática com Um Ano em Nova York e no drama sobre abuso doméstico na minissérie Maid. Fez isto com atuações envolventes que exploravam o alcance da atriz em interpretar personalidades que vão da jovem inocente à dama fatal, caso deste Sanctuary, filme que carrega sobre as costas.
Um dos motivos para isso está na ambientação: Sanctuary é um filme de câmara, em que o diretor Zachary Wigon explora o tempo (o intervalo de uma noite, para ser exato) e o espaço (uma suíte em um hotel) para discutir relações de poder e o poder da imagem e da atuação em manipular o espectador. E também Hal (Christopher Abbott, o clone de Kit Harington), o herdeiro fragilizado e inseguro de um império hoteleiro que recebe a visita da dominatrix Rebecca (Margaret) para dar-lhe força e segurança para assumir o cargo. No decorrer da trama, Hal e Rebecca, e apenas os dois, encenam o que parece ser um jogo até o momento em que parece ser real.
Apesar de se tratar de um filme de câmara, Zachary Wigon quebra a monotonia espacial a partir de brincadeiras visuais: a câmera anexada ao pêndulo, em ponta cabeça ou que se movimenta perpendicularmente do plano horizontal ao vertical para acompanhar o ponto de vista do protagonista são alguns dos recursos do diretor que conferem dinamismo à imagem ainda que não tragam nenhum significado adicional consigo. Em contrapartida, a direção é bem sucedida quando emprega a forma para realçar as relações de poder ou, para adotar o idioma da trama, de dominação e submissão. Quem domina (geralmente Rebecca) está do lado direito da imagem e olhar para quem está dominado do lado esquerdo (Hal, na maioria das vezes), enquanto a direção também organiza a encenação para que Rebecca esteja em posição superior (em pé) quando Hal está em posição inferior (no sofá e mesmo no chão do banheiro).
Essas decisões conversam com um tipo de roteiro em que o espectador questiona onde inicia e termina a manipulação. Será que estamos assistindo ao jogo sadomasoquista o tempo inteiro ou, a partir de certa virada na trama, a fantasia é substituída pela realidade e mal percebemos isso? A insegurança do espectador apenas não é extrema porque o roteiro opta por adicionar um recurso característico de relações sadomasoquistas. Ao mesmo tempo, a direção de fotografia de Ludovica Isidori explora as cores vibrantes a fim de criar o contraste entre a intensidade quente de Rebecca (vermelho) e a insegurança de Hal (azul).
E Margaret está em chamas, igual a uma lâmpada incandescente que queima a mão nua de quem a toque. A atriz constrói a personagem a partir do olhar penetrante que reproduz o ar dominador de dama fatal, mesclado com a inconsequência na forma com que dança como se não se importasse com quem a vê. Esses elementos são somados aos pedidos cada vez mais ambiciosos dela após ter os serviços pagos por um relógio, não importa de qual marca seja. Já Christopher Abbott também está ótimo como o homem medíocre e diminuído que é, com medo porque sabe que é incapaz de preencher as solas do sapato do pai ou atender a cobrança da mãe.
Por fim, Sanctuary abre discussão acerca do poder da atuação como um instrumento para estabelecer e distorcer a relação emocional de quem assiste, para auxiliar no enfrentamento do trauma em um processo terapêutico, embora doentio, e brincar com nossas expectativas levados a acreditar que o cabelo de Rebecca (loiro, em razão da peruca, solto ou preso) era o determinante para entender onde encerra a manipulação.
A incerteza tende a ser estimulante.
Sanctuary ainda não tem data de estreia nos cinemas ou nas plataformas de streaming.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.