Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

5 Descobertas do Festival de Toronto 2022, parte 2

A adaptação do livro Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe e as estreias de diretores em Something You Said Last Night, Snow and the Bear e The Young Arsonists e o documentário Pray for Our Sinners

Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe

Adaptado a partir do livro escrito por Benjamin Alire Sáenz pela diretora trans estreante em longas-metragens Aitch Alberto, Aristotle and Dante é um romance LGBTQ+ que explora o processo de amadurecimento do indivíduo em conjunto com o amadurecimento afetivo. A história é ambientada na década de 80, em cidade do Texas, cenário duplamente repressivo à livre expressão do amor, e enfatiza a jornada transformadora do antissocial e introspectivo Ari (Max Pelayo), após conhecer o expansivo Dante (Reese Gonzales), na piscina pública. 

Como desconheço a obra literária original, não tenho o clássico sentimento de apego que a maioria demonstra com a narrativa, desenvolvida com carinho, sensibilidade e honestidade emocional pela diretora, mas sem qualquer traço de estilo ou formal que a individualize e a torne inesquecível. É o encontro de duas vidas que se completam, no romance timidamente desenvolvido, com o adicional da cobrança machista de origem latino-americano (mexicano, para ser exato). 

Ou ao menos aparente. Respeitadas as diferenças culturais, o pai de Ari, Jaime, vivido por Eugenio Derbez tenta repetir Samuel Perlman, o pai de Élio em Me Chame pelo Seu Nome. Não chega a ter o mesmo êxito, nem tampouco encenar o monólogo que seria visto, revisto e compartilhado nas redes daquele filme vencedor do Oscar, embora vá ao encontro da desconstrução do machismo mexicano. Eva Longoria, que vive a mãe de Dante, demonstra candura e ternura em relação a ambos, enquanto os atores estreantes escalados cumprem o que a narrativa espera deles, exibindo a química exigida, dada a repressão emocional da época. 

Embora esquecível e não haja as batidas no roteiro que o eternizem no imaginário popular, Aristotle and Dante deve agradar os fãs da obra original e também quem busca alternativas de romances retratados de modo honesta, além da dominação heterossexual do gênero. 

Something You Said Last Night

Também dirigido por uma diretora trans estreante em longas-metragens, Luis De Filippis, Something You Said Last Night é bem sucedido na exploração do tema do pertencimento e da dinâmica familiar quando a escritora Ren (Carmen Madonia) e a sua irmã caçula Siena (Paige Evans) viajam de férias de verão na companhia dos pais (Ramona Milano e Joey Parro). Enquanto Siena se torna amiga dos jovens da região e desaparece em festas, Ren está entediada com a rotina diária, tentando ignorar não ter onde morar, nem tostão furado no bolso. Ren amadurece a decepção de retornar para casa, dar o passo para trás, por esta visto como uma derrota. 

Enquanto explora a personalidade dos protagonistas de maneira casual e indireta, com um jogo de incidentes que produzem situações desconfortáveis, Luis De Filippis exibe a relação contraditória entre os membros da família que parecem acolher Ren, somente para criticá-la depois: Siena a chama de nojenta, enquanto a mãe acredita que a filha exige mais trabalho de criação. A relação de Ren com o irmão é ainda mais problemática, de tal forma que este sequer participa do encontro, senão em uma ligação telefônica para parabenizar o pai por seu aniversário. 

Em contrapartida, não há ênfase da direção na dramatização dos acontecimentos. Até por experiência de vida, talvez, De Filippis sabe onde o calo aperta na relação com a família, e faz de Ren seu alter-ego narrativo. Uma mulher forte, consciente de seu valor e resiliente às agressões diretas e indiretas, ainda que esteja atravessando um momento financeiramente negativo que abala sua autoestima. A cena em que protege uma garotinha dos garotos que a estavam provocando é uma forma de tentar resgatar a memória de si quando era criança, revelando o domínio que hoje tem contra a força opressora (exposta ainda na atitude contra o comportamento imaturo de um rapaz curioso para transar com Ren, porém envergonhado de o fazer junto dos amigos). 

De maneira objetiva, com a câmera na mão e perto do rosto dos personagens, capturando o calor do momento enquanto é desenvolvido, Something You Said Last Night é o registro da hipocrisia social e familiar, do isolamento da protagonista neste meio e do afeto construído a partir de resoluções simples, mas eficazes, neste drama de retorno ao lar que opera efeitos direta e metaforicamente. 

Snow and the Bear

Com a produção turca já consolidada no Brasil em parte graças à distribuição da Netflix, após o sucesso de Milagre na Cela 7 (de que não gosto), Snow and the Bear é a alternativa para a construção cerebral de uma narrativa insular. Nela, a enfermeira Aslı (Merve Dizdar) é convocada para ocupar o posto médico vago em um vilarejo remoto na Turquia, para onde viaja durante o inverno rigoroso. Autossuficiente, ainda assim Aslı não consegue seguir em frente sem a ajuda do prestativo Samet (Saygın Soysal), um pária da região depois de ter testemunhado contra Hasan (Erkan Bektas). Certo dia, Hasan desaparece misteriosamente: pode ter sido devorado por ursos que ocupam as florestas da região ou assassinado por Samet. 

O estreante diretor e corroteirista Selcen Ergun, que escreve em parceria com Yeşim Aslan, elenca os arredores do vilarejo como o coadjuvante de um thriller de mistério. Não há nada senão a expressão de hostilidade, ainda que não pareça. Mesmo a presença inconveniente de Samet sufoca Aslı, personagem que sequer teremos a oportunidade de conhecer, senão através do recorte feito em micro detalhes (ex. as ligações telefônicas). É um exercício bem realizado da direção somente atirar aquela mulher determinada naquela cidade, onde não é acolhida, enquanto equaciona o funcionamento do posto médico com a ausência do médico do vilarejo e a busca por Hasan, já que acredita ter sido a última pessoa a vê-lo com vida. 

Selcen Ergun evoca uma versão antagônica de Branca de Neve, trocando o caçador pela figura do protetor da fauna local – que denunciou Hasan por ter assassinado um urso algum tempo antes. Já Aslı não é uma branca de neve passiva e à espera de salvação – senão na cena introdutória -, mas agente dentro de um mundinho machista e opressor. Um realçado pelo ritmo paciente, que confere tempo para o espectador familiarizar-se com caras e bocas naquele microcosmos, a geografia e o estilo de vida dos habitantes. 

Frio de muitas formas, Snow and the Bear dispensa a apreensão ou o sobressalto do thriller em favor da dicotomia entre fuga (de Aslı em direção ao vilarejo, fugindo do quê, não sabemos) e luta, pois, incapaz de deixar o local, resta enfrentar o que está diante de si. 

Pray for Our Sinners

Minha maior dificuldade, na crítica, é expressar-me após assistir documentários e separar a análise da temática da forma com que é abordada. Em Pray for Our Sinners, Sinéad O’Shea denuncia os crimes da igreja católica cometidos na República da Irlanda após ter assumido a educação no país. Uma docência nem crítica nem reflexiva, com casos documentados de agressão dos padres contra os alunos (a exemplo de um dos entrevistados da diretora). E não é somente na educação, a igreja no país geriu lares para bebês de mulheres que não desejavam a maternidade antes de o aborto ser legalizado, em que a negligência e os maus tratos resultaram em 5 vezes mais mortes do que os números antes anunciados. Isso sem mencionar os bebês doados ilegalmente. 

Dá para perceber que Prays for Our Sinners tem uma questão a ser discutida: o foco. Ainda que Sinéad dirija críticas à igreja, de modo que faz sentido que traga episódios distintos para robustecer o teor do apresentado, com a enxuta duração de 81 minutos, não há tempo para aprofundamento e o resultado parece apressado ou mal fundamentado. A diretora tem pouquíssimos recursos para realizar a empreitada que deseja (recursos documentais ou humanos), concentrando-se em Mary, cujo papel era o de organizar, ao lado do marido, um ambiente educacional em que ensinavam jovens sobre métodos contraceptivos e tentavam melhorar a qualidade de vida das mulheres durante o período em que a igreja repelia esses tratamentos. 

Mary é a parte central dessa denúncia, e apesar de haver arquivado uma documentação extensa sobre isso, não parece que Sinéad, que é uma jornalista, tenha provas numerosas e suficientes para organizar a sua denúncia. Tudo bem que basta uma mulher testemunhar ter negado dar o filho em adoção ou o homem que hoje recorda do abuso sofrido há muitos anos para questionar a omissão da igreja, mas para que a denúncia atinja o objetivo, deve ir além. A crítica é institucional, não contra este ou aquele membro da igreja. Assim, apesar de admirar a postura de Sinéad, que dirige, roteiriza, produz e fotografa com a câmera na mão, Pray for Our Sinners é o resultado de boas intenções, não de boa investigação. 

The Young Arsonists

Enquanto Nicole (Maddy Martin) convive com o luto pelo suicídio do irmão mais velho, sua melhor amiga, Veronica (Jenna Warren), enfrenta o trauma de retornar diariamente para a casa onde a espera o pai abusivo e alcoólatra. Para contar a realidade, as duas, reunidas com amigas, decidem ocupar a casa onde morava a família de Nicole, antes de ser despejada pelo banco. Além disto, o trabalho da diretora Sheila Pye também explora a descoberta da sexualidade destas adolescentes, automutilação, crise imobiliária, mas nada de modo muito equilibrado e ordenado dentro do roteiro. 

No lugar disso, a construção imagética é evocativa desde a cena inicial, em que as nuvens de fumaça de um incêndio parecem impedir a compreensão do que está em chamas ou de quem está presente. Nuvens que adotam cores sugestivas, talvez para simbolizar a questão feminista (a queima de sutiãs, talvez?). Não apenas isso, a menstruação simultânea dessas adolescentes ou o pacto feito com sangue menstrual para proteger o lar que ocuparam dos invasores externos, representados pela empresa que detém a propriedade do imóvel, não personalizada na narrativa: até quando o segurança com a roupa da empresa surge, não podemos enxergar o rosto dele. 

Assim, enquanto amadurecem como mulheres, as personagens ainda lidam com o mundo capitalista. A narrativa promete, mas não desenvolve, deixando o espectador seduzido pelo poderio das imagens, mas não pelo argumento central. Alguns elementos são atirados (ex. o diário) para proporcionar conflitos que servem somente para empurrar a narrativa adiante em direção ao seu final climático, mas não para criar uma unidade. 

Filmes assistidos no 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

Críticas
Marcio Sallem

Nanny

Aisha, uma imigrante, consegue um emprego como babá

Rolar para cima