A adaptação do livro Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe e as estreias de diretores em Something You Said Last Night, Snow and the Bear e The Young Arsonists e o documentário Pray for Our Sinners
Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe
Adaptado a partir do livro escrito por Benjamin Alire Sáenz pela diretora trans estreante em longas-metragens Aitch Alberto, Aristotle and Dante é um romance LGBTQ+ que explora o processo de amadurecimento do indivíduo em conjunto com o amadurecimento afetivo. A história é ambientada na década de 80, em cidade do Texas, cenário duplamente repressivo à livre expressão do amor, e enfatiza a jornada transformadora do antissocial e introspectivo Ari (Max Pelayo), após conhecer o expansivo Dante (Reese Gonzales), na piscina pública.
Como desconheço a obra literária original, não tenho o clássico sentimento de apego que a maioria demonstra com a narrativa, desenvolvida com carinho, sensibilidade e honestidade emocional pela diretora, mas sem qualquer traço de estilo ou formal que a individualize e a torne inesquecível. É o encontro de duas vidas que se completam, no romance timidamente desenvolvido, com o adicional da cobrança machista de origem latino-americano (mexicano, para ser exato).
Ou ao menos aparente. Respeitadas as diferenças culturais, o pai de Ari, Jaime, vivido por Eugenio Derbez tenta repetir Samuel Perlman, o pai de Élio em Me Chame pelo Seu Nome. Não chega a ter o mesmo êxito, nem tampouco encenar o monólogo que seria visto, revisto e compartilhado nas redes daquele filme vencedor do Oscar, embora vá ao encontro da desconstrução do machismo mexicano. Eva Longoria, que vive a mãe de Dante, demonstra candura e ternura em relação a ambos, enquanto os atores estreantes escalados cumprem o que a narrativa espera deles, exibindo a química exigida, dada a repressão emocional da época.
Embora esquecível e não haja as batidas no roteiro que o eternizem no imaginário popular, Aristotle and Dante deve agradar os fãs da obra original e também quem busca alternativas de romances retratados de modo honesta, além da dominação heterossexual do gênero.
Something You Said Last Night
Também dirigido por uma diretora trans estreante em longas-metragens, Luis De Filippis, Something You Said Last Night é bem sucedido na exploração do tema do pertencimento e da dinâmica familiar quando a escritora Ren (Carmen Madonia) e a sua irmã caçula Siena (Paige Evans) viajam de férias de verão na companhia dos pais (Ramona Milano e Joey Parro). Enquanto Siena se torna amiga dos jovens da região e desaparece em festas, Ren está entediada com a rotina diária, tentando ignorar não ter onde morar, nem tostão furado no bolso. Ren amadurece a decepção de retornar para casa, dar o passo para trás, por esta visto como uma derrota.
Enquanto explora a personalidade dos protagonistas de maneira casual e indireta, com um jogo de incidentes que produzem situações desconfortáveis, Luis De Filippis exibe a relação contraditória entre os membros da família que parecem acolher Ren, somente para criticá-la depois: Siena a chama de nojenta, enquanto a mãe acredita que a filha exige mais trabalho de criação. A relação de Ren com o irmão é ainda mais problemática, de tal forma que este sequer participa do encontro, senão em uma ligação telefônica para parabenizar o pai por seu aniversário.
Em contrapartida, não há ênfase da direção na dramatização dos acontecimentos. Até por experiência de vida, talvez, De Filippis sabe onde o calo aperta na relação com a família, e faz de Ren seu alter-ego narrativo. Uma mulher forte, consciente de seu valor e resiliente às agressões diretas e indiretas, ainda que esteja atravessando um momento financeiramente negativo que abala sua autoestima. A cena em que protege uma garotinha dos garotos que a estavam provocando é uma forma de tentar resgatar a memória de si quando era criança, revelando o domínio que hoje tem contra a força opressora (exposta ainda na atitude contra o comportamento imaturo de um rapaz curioso para transar com Ren, porém envergonhado de o fazer junto dos amigos).
De maneira objetiva, com a câmera na mão e perto do rosto dos personagens, capturando o calor do momento enquanto é desenvolvido, Something You Said Last Night é o registro da hipocrisia social e familiar, do isolamento da protagonista neste meio e do afeto construído a partir de resoluções simples, mas eficazes, neste drama de retorno ao lar que opera efeitos direta e metaforicamente.
Snow and the Bear
Com a produção turca já consolidada no Brasil em parte graças à distribuição da Netflix, após o sucesso de Milagre na Cela 7 (de que não gosto), Snow and the Bear é a alternativa para a construção cerebral de uma narrativa insular. Nela, a enfermeira Aslı (Merve Dizdar) é convocada para ocupar o posto médico vago em um vilarejo remoto na Turquia, para onde viaja durante o inverno rigoroso. Autossuficiente, ainda assim Aslı não consegue seguir em frente sem a ajuda do prestativo Samet (Saygın Soysal), um pária da região depois de ter testemunhado contra Hasan (Erkan Bektas). Certo dia, Hasan desaparece misteriosamente: pode ter sido devorado por ursos que ocupam as florestas da região ou assassinado por Samet.
O estreante diretor e corroteirista Selcen Ergun, que escreve em parceria com Yeşim Aslan, elenca os arredores do vilarejo como o coadjuvante de um thriller de mistério. Não há nada senão a expressão de hostilidade, ainda que não pareça. Mesmo a presença inconveniente de Samet sufoca Aslı, personagem que sequer teremos a oportunidade de conhecer, senão através do recorte feito em micro detalhes (ex. as ligações telefônicas). É um exercício bem realizado da direção somente atirar aquela mulher determinada naquela cidade, onde não é acolhida, enquanto equaciona o funcionamento do posto médico com a ausência do médico do vilarejo e a busca por Hasan, já que acredita ter sido a última pessoa a vê-lo com vida.
Selcen Ergun evoca uma versão antagônica de Branca de Neve, trocando o caçador pela figura do protetor da fauna local – que denunciou Hasan por ter assassinado um urso algum tempo antes. Já Aslı não é uma branca de neve passiva e à espera de salvação – senão na cena introdutória -, mas agente dentro de um mundinho machista e opressor. Um realçado pelo ritmo paciente, que confere tempo para o espectador familiarizar-se com caras e bocas naquele microcosmos, a geografia e o estilo de vida dos habitantes.
Frio de muitas formas, Snow and the Bear dispensa a apreensão ou o sobressalto do thriller em favor da dicotomia entre fuga (de Aslı em direção ao vilarejo, fugindo do quê, não sabemos) e luta, pois, incapaz de deixar o local, resta enfrentar o que está diante de si.
Pray for Our Sinners
Minha maior dificuldade, na crítica, é expressar-me após assistir documentários e separar a análise da temática da forma com que é abordada. Em Pray for Our Sinners, Sinéad O’Shea denuncia os crimes da igreja católica cometidos na República da Irlanda após ter assumido a educação no país. Uma docência nem crítica nem reflexiva, com casos documentados de agressão dos padres contra os alunos (a exemplo de um dos entrevistados da diretora). E não é somente na educação, a igreja no país geriu lares para bebês de mulheres que não desejavam a maternidade antes de o aborto ser legalizado, em que a negligência e os maus tratos resultaram em 5 vezes mais mortes do que os números antes anunciados. Isso sem mencionar os bebês doados ilegalmente.
Dá para perceber que Prays for Our Sinners tem uma questão a ser discutida: o foco. Ainda que Sinéad dirija críticas à igreja, de modo que faz sentido que traga episódios distintos para robustecer o teor do apresentado, com a enxuta duração de 81 minutos, não há tempo para aprofundamento e o resultado parece apressado ou mal fundamentado. A diretora tem pouquíssimos recursos para realizar a empreitada que deseja (recursos documentais ou humanos), concentrando-se em Mary, cujo papel era o de organizar, ao lado do marido, um ambiente educacional em que ensinavam jovens sobre métodos contraceptivos e tentavam melhorar a qualidade de vida das mulheres durante o período em que a igreja repelia esses tratamentos.
Mary é a parte central dessa denúncia, e apesar de haver arquivado uma documentação extensa sobre isso, não parece que Sinéad, que é uma jornalista, tenha provas numerosas e suficientes para organizar a sua denúncia. Tudo bem que basta uma mulher testemunhar ter negado dar o filho em adoção ou o homem que hoje recorda do abuso sofrido há muitos anos para questionar a omissão da igreja, mas para que a denúncia atinja o objetivo, deve ir além. A crítica é institucional, não contra este ou aquele membro da igreja. Assim, apesar de admirar a postura de Sinéad, que dirige, roteiriza, produz e fotografa com a câmera na mão, Pray for Our Sinners é o resultado de boas intenções, não de boa investigação.
The Young Arsonists
Enquanto Nicole (Maddy Martin) convive com o luto pelo suicídio do irmão mais velho, sua melhor amiga, Veronica (Jenna Warren), enfrenta o trauma de retornar diariamente para a casa onde a espera o pai abusivo e alcoólatra. Para contar a realidade, as duas, reunidas com amigas, decidem ocupar a casa onde morava a família de Nicole, antes de ser despejada pelo banco. Além disto, o trabalho da diretora Sheila Pye também explora a descoberta da sexualidade destas adolescentes, automutilação, crise imobiliária, mas nada de modo muito equilibrado e ordenado dentro do roteiro.
No lugar disso, a construção imagética é evocativa desde a cena inicial, em que as nuvens de fumaça de um incêndio parecem impedir a compreensão do que está em chamas ou de quem está presente. Nuvens que adotam cores sugestivas, talvez para simbolizar a questão feminista (a queima de sutiãs, talvez?). Não apenas isso, a menstruação simultânea dessas adolescentes ou o pacto feito com sangue menstrual para proteger o lar que ocuparam dos invasores externos, representados pela empresa que detém a propriedade do imóvel, não personalizada na narrativa: até quando o segurança com a roupa da empresa surge, não podemos enxergar o rosto dele.
Assim, enquanto amadurecem como mulheres, as personagens ainda lidam com o mundo capitalista. A narrativa promete, mas não desenvolve, deixando o espectador seduzido pelo poderio das imagens, mas não pelo argumento central. Alguns elementos são atirados (ex. o diário) para proporcionar conflitos que servem somente para empurrar a narrativa adiante em direção ao seu final climático, mas não para criar uma unidade.
Filmes assistidos no 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.