Um fazer cinema descontraído e bem humorado com toques de Os Picaretas e The Office
Através da linguagem do humor espertalhão e pastelão, os diretores Marcos Jorge (de Estômago, cuja continuação está em processo de filmagem enquanto escrevo esta crítica) e Marcelo Botta (do programa Furo MTV) explicam o ato de fazer cinema de modo irreverente e engraçado com Abestalhados 2. O próprio título já é uma piada com a indústria, pois, no lugar de desenvolver o um, melhor dirigir a continuação e ter como trunfo a ideia de sucesso do antecessor inexistente.
O roteiro escrito a oito mãos acompanha 4 amigos – Paulo (Paulino Serra), o diretor, Manuel (Raul Cheque), o roteirista, Eric (Leandro Ramos), o produtor e supervisor de som, e Alex (Felipe Torres), o diretor de fotografia – na tentativa de filme o projeto dos sonhos: o filme de ação Acelerados 2. Só que, durante a filmagem da cena final, que envolve o fechamento de ruas, a colocação de gruas, muita ação e efeitos visuais, a equipe torra o micro orçamento que havia à disposição e começa a entreter ideias de como filmar o restante do projeto. Ao mesmo tempo, o quarteto contrata a produção de documentário sobre os bastidores e têm a oportunidade de conversar com o espectador através da metalinguagem para explicar suas ambições e divergências em relação à produção.
O barato de Abestalhados 2 está em extrapolar as etapas do processo cinematográfico, mas sem torná-lo incompreensível, enquanto brinca com os estereótipos da indústria. Paulo e Manuel disputam a autoria da obra cinematográfica, no retrato do embate interminável entre diretor e roteirista, com o desejo do último em manter íntegra a visão escrita versus o esforço do primeiro em colocar a sua impressão digital através do língua de imagens; já Eric é perfeccionista e defensor apaixonado da edição sonora, interrompendo tomadas no meio caso capte ruídos – chegando a modificar o figurino do Herói para corrigir distorções no áudio -, enquanto Alex é o cara que pensa em fotografia apenas em termos do estilo noir – o que gera o momento divertido da cena de filme pornográfico em contraluz.
Sem abandonarem os estereótipos que criaram para si, o quarteto briga, discute, embora conserve a camaradagem mútua e o desejo em fazer cinema, aos trancos e barrancos. Aí entra a parte de processo cinematográfico com a chegada de um ex-piloto, DJ e investidor, Paolo (Nicola Siri), um sujeito malandro, que derrama dinheiro de procedência duvidosa na produção, e os pretextos que o quarteto realiza para filmar determinadas sequências: aí entram Alexandre Rodrigues, de Cidade de Deus, José Loreto, de Mais Forte que o Mundo, e Wellington Muniz, o Ceará, atuando no filme dentro do filme sem saber de que participam do projeto (similar a Os Picaretas, a comédia estrelada por Steve Martin e Eddie Murphy, com o estilo de The Office), e a decupagem heterodoxa de Paulo para filmar a mais simples das cenas, o plano e contraplano.
Mesmo a etapa de pós-produção, com a criação do vídeo promocional, a negociação junto à distribuidora, a criação e divulgação de material de publicidade e a montagem, que tenta o milagre de transformar os fragmentos filmados em longa-metragem entra na brincadeira do elenco que, na maior parte do tempo, acerta no humor descontraído, que somente funciona se houve a suspensão de descrença do espectador. A isso, ainda acrescento as tiradas ou cenas críticas do trabalho criativo, a exemplo do nome dos personagens no filme dentro do filme (Herói ou Mocinha 1 e 2) e da necessidade de ser aprovado no teste de Bechdel para garantir a distribuição.
Abestalhados 2 ainda tem a boa ideia de encerrar dando uma rasteira no espectador, com uma sacada descontraída que justifica o título da narrativa e o conceito metalinguístico. Afinal, ainda que fosse impossível sair algo que prestasse na produção sem pé nem cabeça do quarteto, havia algo melhor a ser descoberto no fim do dia.
Abestalhados 2 está em exibição no Festival do Rio 2022.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.