Carregado de frases feitas e “hot takes” de Twitter, o longa de estreia da diretora Flávia Neves desperdiça uma boa ideia por não saber onde quer chegar.
Por Thiago Beranger.
É fato, e ninguém há de discordar, que o Brasil vive uma crise política histórica nos últimos anos. Certos atrasos da nossa sociedade, que pensávamos estar sendo superados após alguns anos de progresso, vieram à tona com força total e nos mostraram que ainda há muito pelo que lutar. Essas questões estão muito ligadas a aspectos históricos mal-resolvidos que tornam uma imensa parte da nossa população pessoas que guardam valores conservadores e ideias reacionárias. Do outro lado, temos um campo progressista que comprou uma ideia de esquerda pautada em discursos muitas vezes rasos, que desconsideram aspectos históricos, políticos e sociais locais e importam sem filtros conceitos liberais americanos que não se conectam com os verdadeiros problemas que precisamos enfrentar. Todo esse caldo cultural, dá origem a alguns filmes que, apesar das boas intenções, esbarram em sua própria superficialidade. Trabalhos que estão muito mais preocupados em vomitar uma série de pequenos estímulos e clichês de Twitter, do que em construir narrativas ricas do ponto de vista político e, principalmente, do ponto de vista cinematográfico.
Esse ano foi exibido na mostra Panorama, no Festival de Berlim, o longa brasileiro “Fogaréu” da diretora estreante Flávia Neves. O filme traz à tona problemáticas tipicamente brasileiras, a exemplo da escravidão contemporânea, dos conflitos entre povos originários e fazendeiros, da homofobia, do coronelismo político, dentre outras coisas. A protagonista é Fernanda (Bárbara Colen), adotada por uma mulher pertencente a uma tradicional família do interior de Goiás, que retorna do Rio de Janeiro à cidade de origem após o falecimento de sua mãe para resolver questões relacionadas à sua herança. Ao chegar, ela se depara com uma situação bem comum na região: a cooptação de pessoas neurodiversas denominadas pejorativamente como “bobas” para a realização de tarefas domésticas não remuneradas pelas famílias mais abastadas, inclusive a sua. Fernanda é obrigada então a conviver por alguns dias com seu tio Antônio (Eucir de Souza), prefeito e latifundiário da cidade e seus filhos e esposa, enquanto investiga aspectos desconhecidos do seu passado.
Me chamou a atenção na sessão na qual assisti ao filme, na Mostra de São Paulo, a presença de alguns membros da equipe responsável e a fala da produtora Vânia Catani que disse ter sido conquistada e convencida a produzir o longa por conta do argumento apresentado pela diretora. A premissa é realmente instigante e abre um mundo de possibilidades de abordagens que poderiam ser riquíssimas. Infelizmente, o caminho escolhido é o de superficializar todo esse potencial, e transformar as problemáticas em uma sucessão de “momentos de efeito”, principalmente a partir do segundo ato. É sintomático que isso aconteça, porque revela a dificuldade dos realizadores em desenvolver um bom argumento, algo que aconteceu também em outro filme nacional recente com características parecidas, o “Medida Provisória” de Lázaro Ramos.
Essa inabilidade se revela em como alguns aspectos do roteiro são desenvolvidos. Por exemplo, há dentro do filme um elemento fantástico que aparece apenas como um dispositivo para antecipar o plot twist relacionado à origem da protagonista e resolver com um deus ex machina preguiçoso o desfecho, sem desaguar em nenhum comentário mais profundo e parecendo absolutamente deslocado das demais escolhas narrativas feitas pela diretora. Existem momentos também em que o texto é forçadamente expositivo. O que poderia ser resolvido de maneira orgânica, vira frase de efeito involuntariamente artificial apesar dos esforços do bom elenco em torná-las mais bem colocadas. Exemplo de um diálogo envolvendo a fruta “pequi” e outro relacionado a uma “flor que renasce do fogo”. O filme é uma colcha de retalhos de ideias soltas, que são costuradas sem estabelecerem uma unidade.
No final das contas, o que há de mais interessante, que é a maneira com a qual aquela comunidade se relaciona com os tais “bobos” e como isso reflete heranças coloniais ainda muito presentes na nossa vida cotidiana, se perde em meio à necessidade de fazer um grande apanhado de militância superficial. O bom argumento, que fora tão atrativo inicialmente, se transforma em um checklist de frases prontas em meio a uma mise-en-scène sem muita identidade própria. Falta foco. E o que poderia ser um retrato dos conflitos vividos no Brasil atual, se torna uma caricatura de como parte da esquerda liberal prefere arrotar virtudes ao invés de aprofundar ideias sobre como as relações se dão de fato no interior do Brasil.
Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.