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Nada de Novo no Front

Nessa superprodução o cinema alemão se apropria da história de seu próprio país, retratando a guerra de maneira brutal.

Por Thiago Beranger.

Existe uma tradição no cinema relacionada a produções que retratam o fenômeno da guerra de uma maneira crítica, em oposição a produções que fazem disso uma oportunidade de construir heroísmo ou espetáculo. Ao longo do tempo diversos grandes filmes já estabeleceram esse tipo de intenção antibélica, o mais significativo talvez seja o soviétivo “Vá e Veja” (1985), mas mesmo diretores do cinema americano, que tende a romantizar o gênero de guerra, já produziram obras como “Nascido Para Matar” (1987) ou “Apocalypse Now” (1979), que por vieses diferentes também colocam em perspectiva a ideia de que a guerra pode produzir heróis e vilões. “Nada de Novo no Front”, nova megaprodução alemã da Netflix, vem mais ou menos nessa mesma toada. O filme já é a terceira versão nos cinemas da mesma história, os outros filmes são de 1930 e 1979. Porém, essa é a primeira versão produzida pelo país que efetivamente protagonizou o acontecimento histórico que dá origem ao longa: a Alemanha. Os dois predecessores foram produções estadunidenses. 

O longa parte do retrato de vários jovens garotos que se alistam para lutar na Primeira Guerra Mundial por conta de uma visão romantizada do que seria a guerra. A maneira como se organizavam as sociedades dos países que estavam no conflito naquela época produziam uma juventude alienada e a desumanização dos adversários. Isso fica claro quando o filme nos apresenta a 4 ou 5 jovens alemães, que nunca haviam pegado em armas na vida, mas fantasiavam com a possibilidade de “matar franceses” como se tudo não passasse de uma brincadeira, de uma maneira de impressionar as meninas. Não demora para que essa inocência seja absolutamente devastada. Na primeira batalha enfrentada já fica claro para os personagens que a guerra não é exatamente aquilo o que esperavam.

Uma característica interessante de “Nada de Novo no Front” é que o protagonismo do filme é um tanto quanto difuso. Existe sim um personagem que pode ser tido como o principal, Paul (Felix Kammerer) é quem serve como um fio condutor da história. Mas a sensação é de que a própria guerra aparece como protagonista por alguns fatores. O primeiro é que há uma espécie de despersonalização dos jovens que vão para a batalha. Nenhum é retratado tendo traços físicos ou de personalidade assim tão característicos. Em diversos momentos, pelo menos na minha experiência, ficou confuso quem era quem, já que todos eram reduzidos meros peões naquele tabuleiro. Outro fator é a existência de alguns núcleos narrativos diferentes, que não se interconectam diretamente. O exemplo mais claro é o do núcleo liderado pelo ator Daniel Brühl, que mostra a negociação tratada pelos oficiais de alta patente para viabilizar o final dos combates. Por fim, o terceiro fator é a própria característica do personagem Paul, que se comporta passivamente frente aos acontecimentos. Ele se comporta como quase que uma testemunha, é levado de um lado para o outro praticamente apenas reagindo a tudo o que ocorre – algo similar à figura de Florya, protagonista de “Vá e Veja” – o que acaba enfraquecendo a força de sua presença em tela.

Mas é através de Paul que temos acesso justamente ao que há de mais importante do filme: a visão de que a guerra é nada mais do que uma distorção, o terrível sintoma mais agudo das doenças sociais. A violência, as contradições, as mortes, as perdas, a falta de empatia e como isso tudo afeta as pessoas imersas naquele contexto são o verdadeiro objeto do longa. Há uma belíssima cena que ilustra bem essa ideia. Paul e um soldado francês entram em combate corpo-a-corpo e o alemão acaba saindo vitorioso. Mas depois da luta, quando o protagonista retorna a si e percebe seu adversário agonizando com os ferimentos, há um processo de reconhecimento entre os dois. Paul percebe que por um detalhe não foi ele quem acabou ali estirado, sangrando e se contorcendo. Ele enxerga além do soldado caído e reconhece o ser humano que está do outro lado. Enquanto isso acontece, os generais se encontram confortavelmente seguros, em uma longa negociação do armistício. A cada hora que passa, mais soldados caem inutilmente. Mais vidas se perdem em nome do orgulho dos homens que lideram os exércitos, muito mais do que dos conflitos políticos que deram origem à guerra. A informação de que desde o início até o final do conflito os territórios ocupados por cada exército mal se moveu só reforça essa perspectiva.

Mas com tudo isso, há uma incoerência narrativa em “Nada de Novo no Front”. A retórica do longa é claramente antibélica, os elementos de roteiro coadunam com essa ideia, mas há em sua construção visual uma contradição. O filme trabalha dentro de uma lógica de espetáculo. Isso fica bastante claro logo no início, em uma cena envolvendo a luz de um sinalizador que insinua até uma tentativa de encontrar beleza nas trincheiras abertas no front de batalha. Há violência, mas construída a partir de um realismo plástico que gera imagens que dão um tom quase épico para a narrativa.

Se ideologicamente o diretor Edward Berger bebe bastante de Elem Klimov (o já citado diretor de “Vá e Veja”), visualmente a influência parece ser muito mais o Spielberg, de “O Resgate do Soldado Ryan”. Apesar de essa característica tornar o filme bem mais divertido e palatável para o grande público que vai consumí-lo através da Netflix, também implica em uma traição do longa às suas próprias intenções. Pra mim não foi suficiente para estragar a experiência, mas essa é uma observação que faz com que esta produção esteja um ou dois degraus abaixo de suas aparentes influências.

Filme assistido na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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