Um estudo sobre ciência e negacionismo em nome da fé
Sebastián Lelio, ao lado de Pablo Larraín, são os principais autores chilenos em atividade no mercado internacional. Ambos dedicaram esses anos de suas carreiras a explorar narrativas protagonizadas por mulheres. Pablo, com as biografias Jackie e Spencer e a minissérie Lisey’s Story; Lelio, com Uma Mulher Fantástica, Gloria Bell (a versão original e a refilmagem americana) e Desobediência, que reuniu Rachel Weisz e Rachel McAdams em um romance dentro da comunidade judaica hassídica. Agora, Lelio adapta o livro escrito por Emma Donoghue, intitulado The Wonder.
No roteiro, Florence Pugh interpreta a enfermeira Lib, que, no século XIX, é enviada para observar e relatar o milagroso fenômeno da jovem Anna (Kila Lord Cassidy), que jejua há cerca de 4 meses. A Igreja católica tem interesse no resultado da avaliação para ter a beata ou mesmo a santa para chamar de sua, bem como a família e a população do típico vilarejo supersticioso do interior. Entretanto, ninguém parece preocupado com o bem-estar de Anna, senão Lib. À medida que a narrativa e a debilidade de Anna avançam, Lib se vê no dever de cumprir a missão dela, que é de cuidar do próximo, em detrimento do desejado pelo comitê do município que encomendou a investigação ou pela família, resignada em perder a filha contanto que seja em nome da religião.
The Wonder explora o obscurantismo da contraposição entre ciência e religião (fé), e, ainda que seja ambientado no século XIX, não parece datado. A razão para isto é o imediatismo do tema e a forma inconvencional como Lelio aborda a narrativa. De um lado, apesar de inúmeros avanços do íntimo da consciência à exploração do espaço, a ciência continua a ser alvo de críticas por razões variadas: há quem opte por preteri-la em favor da fé no divino e quem resolva, por motivos políticos, desacreditá-la para perpetuar o poder e manter o povo dentro da caverna, alienado. Dentro da narrativa, isso pode significar o sacrifício de Anna, pois a família prefere ter a memória de uma mártir do que a oportunidade de conviver com ela (nem preciso comentar que o conselho da cidade ou a enfermeira auxiliar, uma freira, estão pouco se lixando com a garota). Até mesmo Anna rejeita os esforços de Lib em alimentá-la, e o absurdo coloca a protagonista em uma posição de desvantagem dentro da sociedade, senão pelo apoio do jornalista William (Tom Burke).
Aí estão dois alvos da sociedade contemporânea: ciência e informação, ambas fontes de luz em um mundo coberto de escuridão (claro, quando atuam de modo ético). Há o terceiro e derradeiro alvo: a arte, que convida o espectador a entrar no mundo do faz de conta como recurso da narrativa. Se, em geral, é tácito o pacto entre espectador e artista para crer, por 2 horas, nas imagens exibidas na tela de cinema, em The Wonder, Lelio exige mais. Desde o início, a direção quebra a ilusão de real quando a câmera entra em um galpão de estúdio de cinema e se dirige em direção ao contêiner onde está montado o cenário do século XIX, em uma revelação expressiva de suas pretensões. Sinto que Lelio comenta a respeito do milagre do cinema, que confere a aparência de realidade a mundos fantásticos e a períodos pretéritos, milagre possível pela ciência (tecnologia), mas também pela fé do espectador. E de como a fronteira entre o ontem e o hoje é artificial e está criada em um estúdio. Assim, a tentativa de Lib em abrir os olhos da família contra as forças religiosas e políticas é verdade ontem e hoje.
O recurso é apenas ponto de partida, mas não uma constante. Lelio concentra-se no mundo tornado real no interior do contêiner e também pela fotografia de Ari Wegner, que justapõe o sufocamento e escuridão dos interiores (a caverna) dos ambientes onde Lib frequenta (ex. a casa da família de Anna, o conselho, o hotel) com os planos abertos dela caminhando pela natureza daquele local, um respiro oportuno e uma visão clara e desobstruída daquela oferecida por aquele mundo fechado. E, enquanto escrevo, também reflito que o fato de a narrativa iniciar dentro de um estúdio de cinema, nos tempos contemporâneos, provoca a ideia de que Lib não é daquele período, dada a forma científica de observar e pensar em comparação com os seus pares.
Nas mãos de Florence Pugh, Lib revela-se uma mulher inconformada com as decisões tomadas ao seu redor e que tenta, com a intensidade e determinação inspiradas pela atriz com sua presença, modificar o destino de Anna, que parece certo. Entretanto, tenho lá meus senões com a relação além do profissionalismo desenvolvida entre Lib e William, que, além de destacável do tema, também reforça a obrigatoriedade de que as protagonistas de narrativas iguais a esta precisam de um relacionamento amoroso e sexual quase como um argumento de que desprezam as tradições impostas às mulheres.
Não parece ajudar The Wonder, mas tampouco reduz os méritos desta narrativa de época mais contemporânea do que desejaríamos que fosse.
The Wonder está em exibição no Festival do Rio.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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