Uma denúncia ao capitalismo predatório a partir de uma cooperativa de pêssegos no Canadá
Adoro as obras (baseadas em fatos ou não, ficcionais ou documentais) que expõem a lógica perversa do mercado e como colocam pessoas contra pessoas, para defender, em nome do lucro, a continuidade do que não deveria poder continuar do modo como está. Com isso, não quero demonizar o capitalismo, embora pudesse fazê-lo só com os exemplos de países prejudicados pelo sistema ou com as pessoas em situações de indignidade à margem dele; quero tratar da forma como o capitalismo modifica o pensamento racional e torna um pária aquele que pensa diferente. É o caso dos dedos-duros (ou whistleblowers em inglês), apresentados na protagonista Robin, dentro de cidade rural canadense neste drama Until Branches Bend.
Robin (Grace Glowicki) trabalha como uma empacotadeira do fruto, a cultura de subsistência da região, para a cooperativa local. Certo dia, durante o intervalo de trabalho, Robin encontra um besouro no interior de um pêssego e leva ao conhecimento de seu chefe, interpretado por Lochlyn Munro, que promete averiguar (mas não faz nada). Robin, inquieta, investiga e inicia eventos que põem em risco a colheita e a estabilidade econômica da região, mas por uma boa causa: esta espécie de besouro é uma praga que pode arruinar os pessegueiros como aconteceu, anos antes, com a fazenda de seus pais. Não demora até que Robin sinta a consequência da decisão tomada: alguns viram-lhe as costas; outros, ameaçam-na (atiram pedras na casa, furam os pneus do carro); até sua irmã caçula, Laney (Alexandra Roberts), distancia-se fisicamente, viajando com o namorado em busca de uma vida melhor.
O thriller dramático de estreia de Sophie Jarvis, que também escreve o roteiro, remete aos filmes em que personagens, detentores de informações privilegiadas, colocam-se em risco em prol da verdade contra um sistema opressor e vingativo (aqui, o capitalismo): Serpico, Silkwood, O Informante, O Jardineiro Fiel, todos estes são os irmãos mais velhos de Until Branches Bend, que adota uma estrutura minúscula, mas com início, desenvolvimento e resultado semelhantes. Apesar de ter agido corretamente e respeitado a hierarquia e, diante da omissão, ter obedecido suas convicções, ainda assim Robin é desacreditada, humilhada e assediada. Enquanto isso, também lida com a gravidez cujo pai é o chefe da cooperativa.
Dentro do mundo capitalista retratado em que os homens tomam as decisões – as mulheres apenas servem limonada e entretêm os almoços e jantares -, a direção enfatiza a questão da sororidade: uma parte na relação entre as irmãs Robin e Laney, e a importância da comunicação como indutor da confiança mútua; uma parte na proximidade de outra mulher, que a ajuda a provar o que está alegando, nem que apenas para si, pois as consequências da perseguição local são tamanhas, que questionamos a sanidade de Robin (com decisões da direção que criam imagens surreais do ponto de vista da protagonista).
Essa atmosfera estranha e aterrorizante é construída através da trilha sonora de Kieran Jarvis, acompanhada por um instrumento de sopro descontínuo e incômodo (acho que é flauta, mas não garanto que seja). Já a fotografia granulada e dessaturada, em razão da bitola de 16mm escolhida pelo diretor de fotografia Jeremy Cox, reforça a ideia de que apenas sendo um louco para bater de frente contra o sistema, em vez de se curvar diante dele. Um sistema capitalista que, segundo Sophie Jarvis, está associado ao patriarcado pela figura de Lochlyn Munro (ator que você deve lembrar de As Branquelas e Todo Mundo em Pânico), um sujeito aparentemente simpático, com o figurino tradicional engomadinho (camisa polo e calça caqui), que tenta dar rumo ao império herdado do pai.
Com a ótima atuação de Grace Glowicki, que me remeteu a Mackenzie Davis, Until Branches Bend poderia ter terminado cinco minutos antes, na cena particularmente poética e coerente com o que havia sido apresentado nos letreiros iniciais e sugerido na trajetória a cada minuto mais fragmentada da protagonista. Concluir de modo redondo e expositivo, porém, não macula este trabalho de estreia de uma diretora cujos próximos trabalhos acompanharei com atenção.
Não há previsão de estreia do filme no Brasil.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.