O Live Action A Pequena Sereia recebeu arpões desde antes de sua estreia. A produção foi alvo de ataques de racistas que questionavam a escalação de Halle Bailey, uma mulher negra, como Ariel. Dona de uma voz encantadora, a atriz traz uma ternura inocente para a sereia que é fascinada pelo mundo da superfície. A escolha com certeza ampliou o brilho nos olhos de meninas negras através do fenômeno da identificação. Mas foi além, quando trouxe pluralidade de culturas em ambos os mundos. É possível identificar diferentes etnias entre as filhas de Tritão (Javier Bardem). Pontual também foi colocar outra mulher negra como a Rainha Selina. A personagem é interpretada por Noma Dumezweni, atriz britânica nascida na Suazilândia e filha de sul-africanos.
O filme aposta no discurso conciliador ao concentrar boa parte da narrativa no desenvolvimento da relação entre seres de mundos distintos. É possível identificar o medo do outro em ambos os lados. Logo de início, temos marujos confundindo golfinhos com sereias e atirando arpões contra eles, justificando que os seres fantásticos do mundo das águas leva os marinhos para o encontro com a morte através de seu canto encantado – tal qual no mito de Jasão e os Argonautas. No reino submarino, Tritão justifica sua preocupação com o interesse de Ariel pelos humanos ao contar que sua esposa havia sido morta por eles. Se os mitos tendem ao pessimismo, os contos de fadas são esperançosos.
Ariel e Eric (Jonah Hauer King) são pautados no arquétipo do aventureiro / explorador. Ambos são movidos pela curiosidade e pelo anseio da liberdade. Cada um se sente limitado no mundo em que está inserido e busca ampliar seus horizontes para saciar sua sede de novas vivências. E é em cima desse ímpeto por experimentação que a relação de ambos se desenvolve. A fascinação de Ariel deixa de ser unilateral quando começa a apresentar a Eric conhecimentos até então desconhecidos por ele. A pequena sereia do live-action é diferente de sua versão animada. Ela não se encanta apenas pelo príncipe em um castelo, mas por todos os estímulos que aquele mundo até então proibido tem a oferecer. E assim como ela, nos sentimos convidados a nos aventurar por essa nova realidade apesar de já a conhecermos.
Na trama, Ariel faz um pacto com Úrsula, a Bruxa do Mar. A protagonista entrega sua voz em troca de três dias como humana. E deveria conseguir um beijo de amor dentro desse tempo ou ficaria sob o domínio da bruxa. No entanto, ela não sabia que se depararia com todas as vulnerabilidades intrinsicamente humanas e que a vilã ocultaria a lembrança das regras do pacto de sua memória. Melissa McCarthy traz muito carisma à antagonista, inclusive imprimindo sua veia cômica durante a interação com seus tentáculos. Mas confesso que apesar de ter mais destaque que na outra obra, sinto que a motivação de Úrsula é preocupantemente genérica: movida pela maldade e ganância.
Muito pouco nos é apresentado sobre a origem da personagem de McCarthy. Apenas que se trata de uma irmã de Tritão que deseja acender ao poder e que, em uma tentativa fracassada de outrora, foi exilada pelo Rei dos Mares nas regiões abissais do oceano. O fato de ser intitulada como “bruxa do mar” já me gera preocupação. Afinal, mulheres que alçavam independência foram apontadas como bruxa e assassinadas ao longo de períodos da História. Acrescento ao meu questionamento o desejo pela voz de Ariel, uma voz feminina que pode ser ouvida. Por seu passado ser nebuloso e a raiz de sua maldade não ser revelada, questiono se Úrsula não sofrera abusos de seu irmão no passado, sendo constantemente silenciada até pelo fato de ser diferente (meio polvo e não peixe).
Não podemos fechar os olhos para o fato de Tritão ser um pai abusivo e de ter uma relação edípica com Ariel. Por mais que suas preocupações e receios sejam entendíveis, a maneira com que busca mitigar o interesse de Ariel pelo mundo dos humanos é questionável. Suas ações se baseiam na constante vigilância, cerceamento de liberdade e seu rompante de raiva chega a produzir violência patrimonial. Vale ressaltar que partiu da governante dos homens a aceitação pelo diferente e o primeiro passo conciliatório entre esses mundos distintos.
Os vigias de Ariel, por outro lado, são mais cúmplices do que algozes. O caranguejo Sebastião (Daveed Diggs) — eu jurava que Sebastião era uma lagosta — e sabichão (Awkwafina), que eu acredito ser uma gaivota, acabam sendo os protetores de Ariel em terra, já que o peixe Linguado (Jacob Tremblay) fica restrito às cenas com água. Eles também são responsáveis pelo alívio cômico do filme. Ainda que o visual hiper-realista nos cause uma certa estranheza no primeiro momento, ele acaba até fortalecendo o carisma dos personagens por conferir ares mais desengonçados a eles além dos já impressos pela interpretação impecável de seus dubladores.
É também com Sebastião que o filme apresenta um dos melhores momentos musicais. A performance do caranguejo narrando as belezas da vida submarina é sublime. A música Under the Sea é repleta das cores da diversidade da vida marinha. A dinâmica entre as várias espécies é amplificada por movimentos que acompanham o ritmo ditado pelos Steel Drums – instrumentos de percussão caribenhos. O trabalho de Lin-Manoel Miranda como produtor merece ser aplaudido de pé!
Se as músicas respeitam o metrônomo, em determinados momentos o filme parece perder o compasso. O primeiro e o segundo ato acabaram perdendo o ritmo narrativo em detrimento às cenas musicais. Com isso, o ato final soa um tanto acelerado. Algumas soluções aparentam simplistas. Mas o que mais me incomoda na conclusão é ter preservado a antagonista sendo perfurada pela ponteira da popa do navio – um símbolo fálico. Simplesmente não consigo não enxergar esse final como uma alegoria falocêntrica.
O conto da Pequena Sereia funciona como uma metáfora da conversão do mundo pagão para o cristianismo. Visto que as sereias são criaturas mitológicas que aparecem em diferentes culturas pagãs, o abdicar do poder de suas vozes e de sua principal característica fantástica – as nadadeiras – são uma forma de desistência de um modo de viver pagão em prol da adoção de valores cristãos. Não devemos nos esquecer que Ariel precisou aprender a andar e a se vestir, além de ter sua voz silenciada. A conclusão dessa ruptura com as práticas pagãs viria através do casamento, um ritual religioso sagrado que “purificaria” de vez as convertidas.
Sabendo desse pano de fundo existente no conto, é um tanto decepcionante perceber que a Disney reservou sua ousadia mais à estética. A representatividade é essencial em todas as veiculações midiáticas, assim como a adoção de discursos progressista. Contudo esses precisam estar alinhados com o subtexto e com as escolhas formais. No mais, por serem obras distintas entre si, cabe a liberdade para reescrever cenas e ressignificar personagens. Optar por repetir a animação com uma roupagem realista, sem trazer nada de novo – basicamente o que a Disney vem fazendo – acaba sendo um desperdício de potencial, além de proporcionar uma experiência repetitiva apesar de todos os estímulos sensoriais.
A Pequena Sereia está em exibição nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.