Quando Acid tem início, trabalhadores de uma fábrica protestam contra os administradores após um acidente de trabalho ter provocado a perda da mobilidade de Karim, companheira de Michael (Guillaume Canet). Ele reage brutalmente e é condenado a liberdade probatória com tornozeleira eletrônica. A ideia de individualidade e coletividade está presente na alma do terror apocalíptico de Just Philippot (de A Nuvem) em como Michal reage em defesa dos direitos dos trabalhadores – ou em vingança pelo que Karim sofreu – e no desdobramento da narrativa.
É que a crise do meio ambiente provocou a acidificação da chuva, uma arma de destruição em massa prestes a disparar quando o céu está nublado. Adaptado a partir do premiado curta-metragem de Philippot, ao lado de Yacine Badday, o roteiro segue Michal, a ex-esposa Elise (Laetitia Dosch) e a filha do casal Selma (Patience Munchenbach) durante uma chuva ácida e na busca de abrigo seguro. Juntos, o trio deve encurtar as diferenças e sobreviver ao caos climático e acentuado pela atuação das autoridades.
Nuvens, gotas, chuviscos são elementos recorrentes para criação do suspense e da tensão, é o arsenal mínimo com que Philippot torna a narrativa em uma corrida longe de uma chuva cuja acidez não apenas queima e devora a pele, corrói automóveis e edificações. A verdade é que, embora haja pontos de parada no percurso, não há meio de fugir da chuva, senão se empregar a inteligência.
Esse é um atributo ausente na narrativa. Apesar de curtir a cautela dos personagens em não pisar nas poças ácidas, este aspecto é empregado convenientemente dependendo desta ou daquela cena. Tampouco há regra que estabeleça o tempo de corrosão da chuva; pode sucatear um carro em instantes ou, do contrário, demorar o quanto a narrativa requer a fim de concluir a sequência. A narrativa também não responde o motivo de haver tantos personagens que desejam atravessar a fronteira em direção à Bélgica. Se é compreensível que Michal vá para lá, pois é onde está Karim, por que tanta confusão? Na Bélgica não está chovendo? Pior mesmo é descobrir qual o motivo para Selma deixar o carro, onde estava segura, para fugir por entre poças ácidas, com o intuito exclusivo narrativo de criar situação dramática.
Mas nada, nada supera o carro coach que pede para o motorista respirar fundo após perder o sinal do GPS!
Curiosamente, há até a ideia de um bom filme em Acid, a começar pela crítica à polícia ou às forças repressivas que não ajudam a manutenção da ordem em meio ao caso, seja este caos na manifestação do início da narrativa, seja na organização da travessia de uma ponte terminada em tragédia. Mas do que gostaria mesmo, caso desenvolvido apropriadamente, é a crítica ao individualismo de Michal disfarçado de interesse coletivo. O personagem atua só com os interesses particulares em mente: o reencontro com Karim ou a proteção de Selma. Quando encontra uma família de sobreviventes, lamenta-se por não terem compartilhado água e alimento, e os abandona à própria sorte cruelmente.
É difícil não antipatizar com Michal, que emprega um gato como cobaia para testar a água da torneira. Visualmente, a direção de fotografia de Pierre Dejon elimina a profundidade de campo, retirando o foco do pano de fundo para manter Michael em primeiro plano. Já de um modo simbólico, a tornozeleira eletrônica, que é a punição para o individualismo de Michal, é retirada da perna dele após um gesto altruísta – que força a filha a enxergar alguma forma de herói no pai.
É fruto da conveniência e forçação, não do roteiro que conduz a ação até aquele momento, em uma obra que encena o caos igual a qualquer outra obra antes dela encenou o caos e não tem nada a oferecer senão a premissa original. Mas, se for apenas por esta, melhor ficar com o curta-metragem.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.