Como em Four Daughters, Little Girl Blue é um experimento narrativo que assume a forma de biografia documental de Carole Achache, a mãe da diretora Mona Achache, e ainda de ensaio sobre o método de atuação de Marion Cotillard, escalada para interpretar Carole nas reconstituições. É uma obra investigativa, em que a filha conhece a fundo a mãe e aprende a perdoá-la com base na herança material de diários, escritos, imagens e vídeos, enquanto explora o processo de concepção e desenvolvimento de personagens no cinema.
A narrativa tem início com a imagem poética de uma mulher, em tons de azul, enterrada na areia da praia diante do mar, a qual Mona retorna ao término da narrativa. Depois, a diretora revira o arquivo físico, digital e memorial deixado por Carole, que cometeu suicídio aos 63 anos. Estes arquivos ganham vida a partir do audiofone, o ponto de partida da atuação de Marion Cotillard e que sobrepõe, eventualmente, a voz da atriz, e de recortes que mantém erros ortográficos (avce no lugar de avec). Dá para ficar incomodado com a quebra do sigilo da mãe pela filha, mas é um incômodo rapidamente esvaído com o trabalho da direção.
Além da elaboração de instantes que a associam com a mãe, a exemplo da montagem que justapõe as duas enquanto bebem vinho, a direção cria uma espécie de instalação com os fatos, acontecimentos e as imagens espalhados pelo chão do apartamento e pendurados na parede. A diretora navega por entre a infinidade de peças do quebra-cabeças, incapazes de precisar quem é o indivíduo, mas suficientes para o documento biográfico a que se propõe. Dentro desse saco de memórias, ao término preenchido, o conhecimento de quem evadiu de ser descoberta pela filha em vida.
Apesar de apreciar a biografia, é a parte a respeito do cinema que me fisga. Quando Marion Cotillard abre a porta do apartamento, sequência justaposta à inserção de foto após vencer o Oscar, a sensação é de confusão. Com a interação formal baseada em olhares e frases curtas, Mona abre a gaveta da mesa onde está sentada e empurra roupas e acessórios que caracterizam a mãe. Marion troca de roupa em frente à câmera; veste a peruca cacheada, coloca a lente de contato castanho e os óculos, passa até perfume no corpo. A literalidade do gesto expõe uma forma de atuação caracterizada pela mimese, em que o ator empresta o corpo à expressão de alguém real.
Marin até afirma ser “o papel mais difícil que já fez”, pois não é só a mimese da aparência ou do comportamento – de quando interpretou Edith Piaf, em Um Hino ao Amor -, mas ainda espiritual. À medida que a narrativa avança, nota-se a atriz agarrando a essência de Carole, até o momento em que arranca as páginas que estão na mão da diretora – também inserida como personagem da narrativa. A dúvida que paira é: este é o retrato do processo tal como ocorreu ou, do contrário, do processo encenado pela diretora?
Isso pode ser afirmado de qualquer criação, pois a narrativa não é a preparação, tampouco o fingimento da preparação, é o meio termo entre os dois. Em certo momento, Marion está, no segundo plano da ação, caminhando sobre uma esteira enquanto é filmada com o auxílio de projeção traseira (em que um vídeo é projetado atrás da personagem). Logo depois, esta cena é introduzida dentro da narrativa, parte da encenação. A concepção, os bastidores e a execução se tornam uma só coisa. A biografia da mãe é indissociável do processo de busca e reconstituição.
No fim, Little Girl Blue é um esforço masoquista em que Mona revive momentos incômodos – o som ao beber chá, reproduzido por Marion com exatidão ou em que trouxe o abuso sexual em uma confissão, porém assim é a arte cinematográfica. Um processo cansativo e doloroso que é, nele próprio, a recompensa espiritual do artista.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.