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As 4 Filhas de Olfa

4.5/5

Les Filles d’Olfa

2023

107 minutos

4.5/5

Diretor: Kaouther Ben Hania

Parece que estou filmando meu primeiro filme”, brinca a atriz Hend Sabry no começo do experimento narrativo The Four Daughters, da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania (de O Homem que Vendeu sua Pele e A Bela e os Cães). A frase faz todo sentido. A intenção de Kaouther é investigar a história de Olfa, uma mulher tunisiana, mãe de quatro filhas, duas das quais desapareceram. É este o foco da direção, a princípio, pois a narrativa evolui em um estudo sobre a natureza do cinema como um meio para lidar com traumas.

The Four Daughters já é interessante em razão do dispositivo narrativo não convencional. A diretora realiza uma obra híbrida, na qual a presença das atrizes profissionais Hend Sabry, que vive Olfa, e Nour Karoui e Ichraq Matar, que interpretam as filhas mais velhas, aciona o gatilho emocional da própria Olfa e de suas filhas caçulas. Enquanto as atrizes investigam a personalidade das personagens, aprendem os trejeitos e maneirismos e reúnem o possível para retratar a experiência delas, as personagens reais têm as feridas reabertas, ao mesmo tempo em que têm a oportunidade de conviver com as irmãs novamente.

Em determinado instante, as atrizes demonstram ter dificuldade em se adaptar à burca, um indicador do abismo que há entre a experiência liberal e a doutrina fundamentalista islã. Se é um exercício a respeito do trabalho de atuação, é também um que ilustra a importância da arte catártica. A reconstituição dos acontecimentos obriga Olfa a enxergar a certeza de não ter sido a melhor mãe das filhas e ter contribuído, indiretamente, para o desaparecimento. Ao descobrir que Ghofrane, a filha mais velha, depilou o corpo, Olfa a repreendeu de modo violento e desproporcional. Ao reviver esse momento com as atrizes, a direção obriga que Olfa encare a imagem dela no espelho e também veja o rosto violado e humilhado da filha.

A pergunta feita às atrizes se a escolheriam como a sua mãe é uma maneira ingênua com que Olfa reconhece a culpa e inicia um demorado processo de autoperdão, que não trará as filhas de volta porque não refaz o passado, apenas a capacita a ser melhor mãe às caçulas a partir de agora. É revelador também que a direção intercale cenas com Hend Sabry e com Olfa, até as mulheres serem intercambiáveis e nós perdermos a capacidade de distingui-las (representação e representada criam o nível no hibridismo que reúne ficção e documentário em patamar de equivalência, especificamente no sentido da imagem do cinema). 

A imagem cinematográfica é materialmente real, não importa se este provém de encenação (e reconstituição) ou de decote da realidade que envolve a produção. Este jogo de ‘reais’ é estendido com a introdução de reportagens jornalísticas que revelam qual o paradeiro das filhas. Em termos de mistério, Four Daughters sacia a busca do espectador que deseja por respostas conclusivas, mas em termos de dinâmica familiar, torna-se um dos trabalhos mais fascinantes desta edição do Festival de Cannes.

Primeiro, em razão da questão geracional. Uma revolução individual começa no interior da família, com a rejeição do que é pregado pela geração anterior em favor de uma mudança de pensamento, por mais radical que isto seja. As filhas mais velhas, Ghofrane e Rahma, abraçam o fundamentalismo na forma do hijab e tentam cooptar as irmãs caçulas, Tayssir e Eya, a aderirem. Segundo, a rejeição de santificar a figura materna, falível, arrependida e vulnerável atrás do rosto melancólico, exausto e que se esforça para sorrir.

Four Daughters tem a riqueza factual de documentários – a que importa, pelo menos -, a dramaticidade da ficção e o híbrido que concilia ambos numa obra original e arrebatadora.

Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023

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