Quem pensa que um Festival de Cinema é somente filmes cult ou de arte – denominações que abomino – espere até saber que, em Cannes, também houve uma ficção-científica de terror sobre os experimentos realizados com cachorros, transformando-os em armas para combater ameaças terroristas. Só que, em razão de um problema no dispositivo de controle, os cachorros começam a atacar as pessoas encasteladas em uma ponte prestes a cair. Oi?
Calma, deixa eu voltar algumas linhas. O sulcoreano Project Silence, dirigido e escrito por Kim Tae-gon ao lado de Kim Yong-hwa e Park Joo-Suk, inicia em uma mesa de negociação em que o secretário do governo Cha Jung-won (Lee Sun-kyun) orienta o líder do partido a tomar a decisão de não negociar com os terroristas que fizeram pessoas como reféns. Cha é um pai viúvo, às vésperas de enviar a filha para estudar música na Austrália. Ao levá-la ao aeroporto, a conjunção da neblina espessa e do motorista imprudente em alta velocidade provoca um engavetamento de proporções gigantescas, fechando completamente uma das vias da pista.
Coincidentemente, no mesmo evento, um veículo do governo levando os Echo, como são designados os cachorros soldados, tomba e a carga escapa. Um deles, o Echo-9, consegue arrancar o chip implantado no cérebro. Por sua vez, o resgate organizado pelo governo não só não salva ninguém, como também coloca a ponte estaiada em risco de desabamento. Em resumo, 116 pessoas ficam encurraladas sem ter para onde ir, cercados por uma dúzia de cachorros soldados que os enxergam como inimigos.
Desde a cena inicial, em que os personagens são apresentados de modo superficial – o frentista malandro, a jogadora de golpe e a cadete que a acompanha, o marido idoso ao lado da esposa senil – antecipamos quem tem chances maiores ou menores de sobreviver. Enquanto isso, a consciência de ser um filme B, apesar de proporcionar algumas liberdades à narrativa, não é uma carta em branca para o que quer que aconteça. Por mais que tenha comprado a premissa do roteiro, não é defensável o desenvolvimento.
É que Project Silence parece ter vergonha de ser B, e procura em traumas e metáforas uma alternativa para que a trama de cachorros soldados assassinos na ponte matando pessoas indefesas possa ser mais do que parece. Pai e filha lidaram diferentemente com a morte da mãe, e a jovem guarda um livro infantil afetivo e que será a chave para alguns eventos. Já a omissão e negligência das autoridades é questionado, embora Tubarão tenha feito melhor há cerca de meio século. Levar a premissa a sério não é o mesmo que tornar a narrativa em refém de uma tendência de terror elevado, obrigando-a a reduzir os estímulos diretos. Falta gore, falta terror no ataque dos cachorros e cabe ao frentista o papel de ser o alívio cômico – é quem sopra fogo igual ao Charmander de Pokemón.
A fotografia noturna de Hong Kyung-pyo tampouco ajuda. Ela esconde o terror atrás da neblina e dos escombros, sem que a direção tenha êxito em materializar a ameaça dos cachorros da mesma forma que a trilha sonora de John Williams fez em Tubarão. Sem que haja a sintonia entre a direção e a fotografia, a narrativa nem cria medo da iminência de um ataque, pois embora estejam em toda parte, os cachorros soldado surgem quando convém, nem terror em razão da violência, pois há pouquíssimos momentos assim. Está batida de cabeça estende-se ao roteiro que não decide se os cachorros são inteligentes, de tal modo que usam os alarmes dos carros para dissuadir a atenção dos humanos antes de atacá-los, ou não, caindo em armadilhas qualquer.
O roteiro ainda é furado em utilizar, como veículo de fuga, um carro que estava no prego e objeto de reboque minutos antes, ou quando evita ouvir o cientista que criou tais animais. E confesso que daria para relevar tais pontos, caso Project Silence enxergasse a si da forma como deveria: um filme B, que era para ser divertido, mas se torna um engodo ao levar-se a sério demais.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.