Durante 40-45 minutos de Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, refleti que deveria estar amando a continuação da bem sucedida e vencedora do Oscar animação de 2019. Mas não estava. Era a cena em que Miles chegava atrasado à festa de aniversário do pai, Jefferson Davis. Apenas o que me chamou atenção – afora a beleza da animação – foi o foco distorcido do pano de fundo. Assistia, mas não sentia o drama da relação entre Miles e os pais, ele e Gwen, e esta e o pai, capitão Stacy. Enquanto isso, só pensava que o cinema havia exibido a cópia errada e que estava em uma sessão 3D sem os óculos. Bem, dá para notar que estava tendo uma relação emocional morna em comparação com a que tive com o antecessor (que integrou a minha lista de melhores do ano, leia a crítica aqui).
A culpa era minha. Sem esses mornos e contextualizadores 45 minutos iniciais, não haveria o impacto emocional que há no acachapante e inesquecível terceiro ato. O trio de roteiristas Dave Callaham, Phil Lord e Christopher Miller investem, em vez de gastar, tempo para situar o espectador após Miles e Gwen destruírem o colisor de partículas do Rei do Crime. Na Terra-65, Gwen, na condição de co-protagonista, tem uma relação irregular com o pai amável, apesar de ele a ter eleito como inimiga número um. Após derrotar o Abutre renascentista, Gwen revela ao pai a sua identidade secreta. Contudo, é rejeitada, obrigando-a a deixar o universo e ser acolhida pela Sociedade Aranha liderada pelo Homem-Aranha 2099.
Corta para a Terra-1610. Miles Morales está à vontade no uniforme do herói e com novos poderes (invisibilidade e descargas elétricas). Ele patrulha as ruas do Brooklyn enquanto tenta convencer os pais de que está preparado para estudar em Nova Jérsei, em uma universidade conceituada. Atrasado para a reunião com a conselheira escolar, por causa da luta contra o pitoresco Mancha, Miles reencontra Gwen, passeia por Nova York e a stalkeia (isto não é legal, Miles!) até o buraco de minhoca que o permite atravessar o multiverso rumo ao seu destino.
Através do Aranhaverso é uma aventura típica do herói, pois combina a coragem e o senso de humor com o lema que norteia suas ações: ‘grandes poderes trazem grandes responsabilidades’. O bordão não precisa ser repetido, somente sentido. O instante em que Gwen revela a identidade secreta ao pai proporciona um misto de beleza (estética) e tristeza (narrativa). À medida em que as cores do pano de fundo mudam (ilustrativas da confusão mútua), o afastamento espacial na imagem é revelador de que Gwen precisa abrir mão da família a fim de ser a heroína que é. Essa dicotomia é ainda apresentada em como Gwen enxerga-se nos reflexos do metrô (como Mulher-Aranha), e é um testemunho da criatividade cinematográfica da equipe de diretores que o arco dramático da personagem seja concluído apenas com a inversão da imagem que enxerga no espelho.
Enquanto isso, Miles tem um conflito adolescente por excelência – deixar a casa dos pais. No entanto, com o passar da narrativa, isto é também expresso em abandonar o que significa ser um Homem-Aranha. Um conceito de destino, cuja trama os diretores manifestam de uma maneira visualmente marcante: a teia do multiverso. Para mantê-la íntegra e proteger os universos onde habitam cada Homem-Aranha, um pragmaticamente cruel Miguel O’Hara defende que ser o herói significa assistir à morte dos que ama e não interferir no processo doloroso e transformador. Peter Parken, Miles Morales e os demais não podem impedir a morte de Tio Ben, Gwen Stacy, Aaron Davis, ou suas variantes, pois é isto que tornaram quem são.
Nesse sentido, a anomalia não está limitada ao conceito narrativo (não estar no universo em que nasceu), mas de não se conformar com o destino preparado. A oportunidade, a perda e o não conformismo são o que separam o Homem-Aranha do Gatuno, por exemplo.
Visualmente, a equipe diretorial Charlie Martin, Joaquim Dos Santos, Justin K. Thompson e Kemp Powers adotou o estilo caracterizado pela multiplicidade de estilos, como anteriormente. Isto lhes dá a oportunidade de introduzir um Homem-Aranha Lego ou um Homem-Aranha Punk que parece oriundo de recortes animados de páginas de revistas adolescentes. A sequência em que o Abutre destrói uma escultura pós-modernista no Museu Guggenheim, e da destruição nascem esculturas menores, é o aceno à liberdade proporcionada pela animação e o modo como os diretores empregam-na para a quebra de padrões de animação 3D. Homem-Aranha: Através do Aranhaverso discute a diversidade aliada à individualidade, que respira através dos escombros do conformismo Miguel O’Hara exige da Sociedade Aranha.
Os diretores não fazem só jogos estéticos divertidos – os sons da bateria que se transformam em vibrações na imagem. Eles usam a animação conscientemente para tornar um aparentemente ridículo Mancha (que parece uma vaca malhada mesmo) em um nêmesis ameaçador. Basta alterar os traços da animação em uma espécie de borrão expressionista. Ou, então, eles deformam o design de produção doméstico, tirando-lhe expressividade. A sensação é de que percebermos o que é importante: a relação entre personagens e a troca de olhares. E, se há um, e somente um elemento que me irrita são os olhos vermelhos no rosto do vilão. É um clichê batido e que vem acompanhado do momento em que repete “Nós somos os mocinhos. Nós somos”, para ver se ainda acredita nisso.
Enquanto isso, o formato da narrativa e a propriedade da Sony dos direitos autorais do personagem (e seu universo) proporcionam um caminhão de easter eggs. Estes, em vez de forçados, são introduzidos naturalmente. É um aceno ao game, à HQ, com a presença de um personagem que fala em voz alta o que realiza a olhos vistos, às animações e aos filmes que agradam os fãs sem prejudicar a liberdade com que a narrativa movimenta-se igual ao herói faz nos arranha-céus de Nova York.
Bastante humano, para demandar a construção de personagens e situações nos 45 minutos iniciais, e repleto de comédia e ação em um estilo à altura da ambição temática, Através do Aranhaverso é a prova de que o original, de 2019, não foi só obra do acaso. Há uma quinta avenida inteira de oportunidades para serem exploradas com criatividade e originalidade em um dos grandes filmes do ano.
Thiago Beranger escreveu uma crítica sobre o filme. Leia clicando aqui.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.