O silêncio pode ser ensurdecedor. Com um filme onde o som é sentido com os olhos, o cineasta estreante Matheus Cabral nos faz experimentar o sufocamento da rotina de uma dona de casa através do curta metragem Kikazaru.
A obra é enaltecida por atrair a atenção ao tema da acessibilidade. O filme nos recolhe o ouvir para que experimentemos o som por meio das legendas. No começo é um pouco difícil, mas em pouco tempo nos acostumamos à essa nova forma de consumir um filme.
A obra vai muito além de sua crítica à acessibilidade e, apesar de ser sem som, está muito longe de ser silencioso. Sua atmosfera é hostil. A claustrofobia que ele proporciona vem do acompanhar a repetição exaustiva das mesmas ações, dos mesmos quadros. Retratar atividades do dia-a-dia como cozinhar e lavar a louça, à princípio, pode parecer banal. O curta escolhe ir contra a corrente priorizando direcionar a câmera exatamente para essas ações, deixando de lado os demais acontecimentos que diferenciariam um dia do outro.
O ritmo de curta acelera conforme as elipses se multiplicam ao longo da narrativa. É agoniante acompanha a agonia da personagem. É como se também estivéssemos vivendo naquele eterno looping de imagens e ações cotidianas.
“Kikazaru”: Um macaco tapa os olhos, um macaco tapa os ouvidos, um macaco tapa a boca. Para aquela mulher na tela, o ser não é mais possível. Apenas o servir. A desumanização do indivíduo se manifesta naquele turbilhão de imagens. Como se não bastasse a fotografia em preto e branco que confunde a personagem ao cenário, seu apagamento acompanha o apagamento de letras e silabas nas legendas. E é nesse momento que o recurso transcende sua função instrumental e se converte em linguagem.
O filme nos faz refletir sobre a vida de uma mulher comum enquanto nos proporciona uma experiência sensorial única. É curioso como ao longo do filme todo aquele silêncio sufocante só nos permite ouvir nossos batimentos cardíacos, mas, ainda assim, em um momento específico, um único som se projeta dentro de nossa mente como se o tivéssemos ouvido: o grito de desespero.
Em pouco tempo, esse carrossel de frames nos oferece muitas sensações. É incrível o poder que a imagem possui de ser verborrágica, ainda que não esteja acompanhada do som. Kikazaru consegue nos entregar muito com muito pouco recurso. É surpreendente saber que tudo isso saiu de um projeto de conclusão de curso que pretendeu homenagear os pais, deficientes auditivos, e a avó do realizador.
Kikazaru foi exibido na 2ª Edição do Festival de Cinema de Vassouras, onde recebeu o prêmio de Melhor Filme como Acessibilidade.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.
2 comentários em “Kikazaru”
Agradeço demais pela sua crítica. Fico realmente emocionado ao perceber que o filme conseguiu te sensibilizar. Isso demonstra que a mensagem que o filme quis transmitir foi compreendida de forma clara, até mesmo por compartilharmos de algumas coisas em comum. Muito feliz por ter apresentado o filme para vocês e de receber esse retorno tão acolhedor.
Eu que agraço sua presença por aqui! É sempre uma honra ter o realizador comentando sobre a crítica. Seu filme é sensível da mesma maneira que é necessário. Trazer luz sobre ele é bem mais que uma obrigação. Vem de um ímpeto pessoal de colocar em palavras a maneira como ele me emocionou. Espero que você ainda realize muitas obras e que eu consiga contemplá-las.