Muita água passou ao longo de 50 anos de carreira registrados em filme sensível sobre Lô Borges.
Nos últimos dias assisti aqui na Mostra de Ouro Preto a três documentários sobre música. Por conta do tema da edição, que reflete sobre a influência da música preta do Brasil em seus diálogos com o audiovisual, é natural que esse formato acabe aparecendo bastante na curadoria. A experiência com esses três filmes – “Baile Soul” de Cavi Borges, “Lupicínio Rodrigues – Confissões de Um Sofredor” de Alfredo Manevy e “Lô Borges – Toda Essa Água” de Rodrigo de Oliveira – contudo foi bem diferente. Cada um dos filmes possui uma abordagem, que apesar de partirem mais ou menos do mesmo lugar, tem resultados bastante diferentes lá na frente.
As três obras trabalham com a fórmula convencional dos documentários do tipo: depoimentos sobre o objeto do filme acompanhados de imagens de arquivos que ilustram os momentos citados. Porém, cada filme leva essa fórmula a algum lugar específico. “Baile Soul” fica refém desse formato, e apesar da tentativa de impor um ritmo diferente, inspirado no soul à sua montagem, acaba se desorganizando e se tornando pouco interessante. “Confissões de Um Sofredor”, por outro lado, encontra alternativas criativas e consegue ir além de uma mera explanação sobre o artista documentado, se aproximando verdadeiramente de sua obra. Já escrevi mais profundamente sobre os dois longas e os textos estão disponíveis aqui mesmo no site caso a leitura interesse. Para mim, “Toda Essa Água” fica no meio do caminho entre os exemplos acima.
O filme acaba não sendo assim tão criativo em sua forma. A obra de Lô Borges torna possíveis diversos caminhos. A poética do autor é bastante peculiar e poderia ser explorada imagéticamente de maneira criativa. Para não ficar apenas no exemplo do filme de Alfredo Manevy, já citado no parágrafo anterior, cito também o recente “Moonage Daydream” de Brett Morgen, que consegue interagir de forma inventiva com a obra de David Bowie, indo além de um simples relato de sua vida. Lô Borges é um artista que trabalha em suas canções imagens fortes, caminhos melódicos que nos conduzem por verdadeiras viagens. Há em sua obra um quê de lisergia que, se bem explorada, seria interessante de ver nas telas. Não foi esse o filme feito. Talvez nem me caiba levantar essa possibilidade, já que fica claro que em momento nenhum foi um caminho cogitado por Rodrigo de Oliveira. Essa é mais a conjectura de um também fã do artista em questão, do que uma leitura crítica sobre “Toda Essa Água”. Então, deixarei de conjecturar e passarei a falar do filme que vi, não do que poderia ter visto.
Há algo de muito forte no longa, que suplanta o formato quadrado e torna tudo mais interessante, que é a força dos encontros entre Lô e sua turma. Esse é essencialmente um filme sobre esses encontros. Sobre os encontros que aconteceram há mais de 50 anos atrás e foram fundamentais na construção do artista que ele se tornou. Dos encontros que acontecem no presente fílmico, e extraem novas perspectivas sobre sua carreira e o tempo que se passou. O filme trabalha uma dialética entre os dois tempos. Entre a juventude e a maturidade – que Lô define como “ter vinte anos pela terceira vez”.
É interessante pensar que sem os encontros com Milton Nascimento, Beto Guedes, Márcio Borges e companhia, o Lô Borges que conhecemos não existiria. Sem Milton não existiria o disco “Clube da Esquina”, a possibilidade de assinar contratos com gravadoras, uma das parcerias mais bonitas e prolíficas da música brasileira, e talvez o talento do “biografado” não fosse revelado ao mundo. Sem o encontro com Beto não haveriam as primeiras experiências, a banda de amigos, o aprender fazendo. Sem o encontro com Márcio não haveria canções incríveis feitas pelos dois irmãos, não haveria a influência intelectual, talvez não houvesse nem o interesse pela música. Aliás, sobre Márcio – que linda é a história do nascimento do irmão mais novo, em que o mais velho pede à mãe que aquele bebê seja dele. De fato foi em determinado sentido.
Lô foi moldado por esses encontros. Todos somos moldados por encontros.
Esses encontros ganham mais potência quando se constata que resistiram ao tempo. Em um dos momentos mais bonitos do filme, Bituca conta a história de quando ele e Lô se reaproximaram após anos de separação. É comovente perceber o entrelaçamento das histórias desses dois gênios da música brasileira. Se pararmos para pensar, os grandes artistas que existem no mundo só se tornaram quem são por conta desse tipo de parceria. Há Bituca e Lô. Lennon e McCartney. Caetano e Gil. Enfim, exemplos não faltam.
Toda Essa Água, título de uma música presente no álbum de 1972 do artista, que Rodrigo de Oliveira pega emprestado para dar nome também a seu filme, portanto ganha diversos sentidos quando confrontado com a narrativa que se vê em tela. Há um fluxo contínuo de ideias na cabeça de Lô. Mas sobretudo, o filme deixa claro o movimento ininterrupto da vida, o rio da história de um gênio que, com mais de 50 anos de carreira, continua olhando para frente, produzindo, se renovando, mas levando consigo toda a água que passou ao longo de tanto tempo.
Filme assistido na 18ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.