Não era para eu me surpreender com Wim Wenders após Paris, Texas, Asas do Desejo ou Pina, mas Perfect Days proporcionou o que raramente é oferecido. Um encantamento pelo prosaico e mundano, sem mascarar a crítica social encenada. Há um quê de Jacques Tati, no humor que brota do cotidiano, uma pitada de Yasujiro Ozu, na simplicidade do devir, e a busca da direção em encontrar o agora e o passado em alguém que muitos ignoram em suas rotinas diárias.
Protagonizada por Koji Yakusho, vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Cannes, a narrativa namora a sensorialidade no som da vassoura ou na respiração profunda de Hirayama, antes de entregar o espectador a seus cuidados durante o curso da rotina diária: a organização do quarto, o asseio, o escovar dos dentes, o café que escolhe na máquina de venda automatizada, a fita cassete que escuta, os objetos que atraem o seu olhar, a forma séria e digna com que encara o trabalho (zelador de banheiros públicos) e o sorriso por fazê-lo bem feito, a bebida e o livro que compreendem seu lazer antes do repousar para um dia não idêntico, apenas similar ao anterior. Hirayama aprecia não o silêncio, mas a ordem decorrente. A chegada do tagarela Takashi, seu funcionário, é um dano colateral à disciplina diária.
Existe um conforto em obras iguais a Perfect Days, desinteressadas neste jogo de conflito, causa e evento do cinema narrativo, e mais interessadas em uma vivência particular. Nem é que não haja conflitos (Hirayama empresta a van a Takashi levar a namorada ao encontro, e isto rompe a rotina meticulosa do protagonista), é que estes não precedem a vivência que a narrativa oferece. Uma em que o ato de arrancar a erva daninha do jardim da praça para plantá-la na horta particular é um gesto transgressor e revolucionário, ao dar a oportunidade para que um marginalizado floresça.
O gestor é maior do que o conflito, do mesmo modo que o tempo se revela descompassado no retrato do cotidiano. Normalmente, narrativas similares enfatizam a brutalidade do tempo na vida das pessoas. Aqui, ocorre o contrário. O tempo é um aliado, pois sob controle, pelo menos, desconsiderado: Hirayama deixa o relógio antes de sair de casa, em um gesto óbvio de que o tempo não lhe importa. É paradoxal, inclusive, pois a narrativa avança e partes da rotina de Hirayama começam a ser abreviadas ou suprimidas (o mesmo tempo que ignora é o tempo que não o ignora). Os dias de trabalho passam, chega o fim de semana, e a rotina, em vez de ser interrompida, é ampliada, pois o fim de semana se torna apenas o acréscimo à ela, no fim das contas.
Sendo o cinema a arte do tempo, ao menos de acordo com o soviético Andrei Tarkovsky, o diretor Wim Wenders controla-o com maestria. O diretor percebe e compreende o paradoxo temático e o retrata no contraponto entre a pergunta retórica “Por que as coisas não podem permanecer como são?” e a afirmação “Nada está mudando”. De verdade, nada muda, não de maneira essencial, mas nada permanece o mesmo: o garoto que gosta de brincar com a orelha de Takashi teve sua rotina interrompida com o desligamento do funcionário, o homem no parque aparece nas ruas, a mulher que almoça na praça está agora chorando. As partes da rotina mudam, mas o todo permanece igual, e é esta a constatação que Hirayama chega ao fim da narrativa, em um close que se estende o tempo suficiente para ser inesquecível.
É um instante que encontra conforto na música e no rosto do ator, alegre e melancólico para que vejamos a dupla face de Perfect Days: uma obra que embeleza e encontra a ternura na vida comum de Hirayama, enquanto planta a semente da crítica em como encaramos o zelo obsessivo à rotina e ao trabalho como uma boia salva-vidas para evitar o eventual amargor que há na vida (e que perseguem Hirayama nos sonhos). Acho que Hirayama sempre notou isso em como permanece, esperançoso, olhando para cima, em direção à torre denominada Sky Tree (árvore dos céus), às árvores do parque e à luz que deixa passar por sua copa, na busca do inominado que resolva a equação da vida.
Contudo, não encontra. A resposta não está acima (ou abaixo). Está na árvore plantada, na gentileza concedida, na troca de olhar, no replay da música. Não está, necessariamente, na materialidade das coisas, porém na significação que damos a cada uma delas, ao doarmos o nosso tempo (imaterial) e tornar o agora o mais essencial dos presentes. Ao menos é isto que, creio, Wim Wenders tenha feito em Perfect Days.
Crítica publicada para a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “Dias Perfeitos”
Muito obrigada pela crítica, certeira e muito tocante!
Obrigado pelo comentário 🙂
Adorei como a crítica abordou as nuances dos takes, destacando as sutilezas emocionais que enriqueceram a narrativa. Além disso, a análise perspicaz da direção e da cinematografia trouxe uma nova camada de apreciação ao filme. Foi uma leitura envolvente e esclarecedora que me deixou ainda mais atravessado pelo filme. Obrigado, Marcio!