Muitos mais do que uma boneca!
* contém spoilers
Por meses, as redes sociais entraram em convulsão, especulando qual seria o escopo e as alternativas do roteiro de Barbie. As postagens expressaram isto, com mil teorias baseadas em teasers, trailers, (falsos) informantes e entrevistas do elenco. Entretanto, após assistir ao filme, o roteiro co-escrito pelo casal Greta Gerwig e Noah Baumbach parece-me ser o único possível dentro das limitações inevitáveis, em razão de ser uma produção de estúdio com a participação da Mattel.
A previsibilidade, digo, inevitabilidade só parece frustrante enquanto escrevo. Pois, à medida em que a narrativa progredia, eu pude sentir um misto de subversão e conforto, aspectos contraditórios, uma vez que o primeiro pressupõe a ruptura do status quo (o segundo). E o adjetivo contraditório é um bom rótulo para Barbie.
Antes de apresentar o mundo utópico, mas artificial em que Barbies convivem em harmonia ao lado de Kens, Midge (Emerald Fennell) e Allan (Michael Cera), a narrativa homenageia e subverte o ato introdutório de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Enquanto, do ponto de vista de neandertais, no clássico de Stanley Kubrick, foi a descoberta da arma que impulsionou a humanidade, em Barbie é a chegada da boneca que modifica a relação de garotinhas com a expectativa de serem donas de casa e mães.
A boneca Barbie não destruiu simbolicamente a maternidade – uma interpretação afobada ou alienada à narrativa pode sugerir isso -, mas sim a obrigação de que mulheres nasceram só para serem mães. Movida por essa ilusão de empoderamento, combinada com o fato de que a Barbie oferece às garotinhas o poder de ter uma casa, carro e o emprego com que sonhavam, que a Barbie (Margot Robbie) acorda todas as manhãs com a certeza de que não há nada que não pode fazer. Será mesmo?
A ilusão de poder não é poder. O design de produção de Sarah Greenwood (será um crime se não for, ao menos, indicada a prêmios) apresenta um mundo artificialmente idílico, rosa e não funcional, quanto à utilidade dos objetos cênicos com que Barbie interage diariamente. A Barbielândia é falsa, comparada com o mundo real de Venice Beach. Uma ideia cultivada por Ruth Handler (a criadora da boneca), e desvirtuada, com o passar dos anos, por CEOs preocupados só com a lucratividade, que não entendiam nada das demandas femininas. E o design de produção acerta de novo ao idealizar a Mattel como a corporação igualmente artificial, cujo cinza metálico e bureaus separam uns dos outros, só que em ‘caixas’ menos rosas do que aquelas em que estão as Barbies.
Através da artificialidade, Greta Gerwig dialoga muito bem com a contradição existente na alma do filme (e da boneca). A Barbie empodera, mas só algumas garotas aderentes a padrões estéticos ou emocionais inatingíveis. Quando alcança grupos minoritários ou subrepresentados, não é culpa da consciência empresarial, mas da possibilidade de lucros maiores. E esse diálogo acontece dentro de um blockbuster que pretende conscientizar e… comercializar ingressos e bonecas. Não é à toa que a Barbie, boneca, enfrenta questões existenciais que a levam ao mundo real, em que deve decidir entre consertar a membrana que separa real e fantástico, retornando à existência perfeita e alienada de antes, ou abraçar a imperfeição, e construir uma realidade que jamais será perfeita, mas pode chegar mais perto disso.
A jornada de Barbie já é difícil, mas piora ao lado de um codependente Ken (Ryan Gosling, em atuação propositadamente ridícula e assustadoramente real). Ken exibe-se para atrair a atenção da Barbie, antes de aprender acerca do patriarcado e tentar reproduzi-lo onde era a Barbielândia, rebatizada de Kendom. A crítica satírica à masculinidade tóxica é feita de uma forma leve e orgânica à narrativa, igual à crítica ao capitalismo e à voracidade com que este se apropria de causas afirmativas.
Assim o roteiro é capaz de introduzir gags irreverentes acerca do SnyderCut e O Poderoso Chefão sem que isto abale a seriedade com que lida com o tema central. Em certo instante, Ken pergunta o que aconteceu com o patriarcado no mundo real. Um homem na rua lhe responde “Só estamos fazendo bem melhor agora”. Adiante na narrativa, Barbie confunde as participantes do Miss Universo com os membros da Suprema Corte da Barbielândia, gag que impressiona por sua eficácia e simplicidade. Mas nada melhor do que o momento em que há a quebra da quarta parede com a introdução de uma nota da diretora hilária sobre Margot Robbie.
Para essas gags também há momentos inspiradores, e America Ferrera, além de brincar de boneca literalmente narrativa, tem um monólogo combativo e poderoso que a destaca entre tantas participações (Kate McKinnon, a Barbie estranha, Emma Mackay, Issa Rae). Fora isso, a direção concilia múltiplas discussões atrás da ilusão de artificialidade narrativa: a crítica aos papéis socialmente impostos, a ilusão de liberdade que algumas vitórias – conquistadas ou concedidas? – proporcionaram às mulheres, a mudança como elemento determinante na criação de sociedades mais justas e ainda as incoerências de movimentos afirmativos, não em razão da pauta justa e igualitária, mas da eficácia e cooptação pelo capitalismo.
Greta Gerwig realiza a tarefa de entreter, criticar, satirizar e provocar reflexão com graça e leveza. Ela enfrenta as questões sociais com uma postura irônica (a cena final de Issa Rae) e conciliadora, em vez de beligerante, e provoca uma transformação da Barbie, de boneca estereótipo condenada à ilusão de perfeição à mulher que abraça as imperfeições, pois as individualizam. E executa isso no encontro potente e memorável entre Margot e a atriz Rhea Perlman, intérprete de Ruth Handler, a mãe da Barbie, criada em homenagem a Barbada, a sua filha.
Barbie é muito mais do que uma boneca, é uma ideia e, quem sabe, uma revolução.
P.S. A figurinista Ann Roth é a senhora idosa que Barbie elogia no banco de ônibus.
Leia também a crítica de Álvaro Goulart clicando aqui.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Barbie”
Ou seja,o esperado, visto. Não há ia muito pra onde correr…só teria sentido esse filme na mão de um Diretor disposto a esquecer tudo isso e escrever um roteiro original,fod@ e inserir a boneca dentro dele como boneca!!!! Um Pinóquio de Del Toro,por exemplo!