O cinema de ação de espionagem parecia haver exaurido os temas, os contextos geopolíticos e mesmo as possibilidades de encenação. O subgênero ou estava refém das estripulias que desafiam a morte executadas por Tom Cruise. Ou do peso que o nome James Bond ainda carrega, ou de intervenções no sexo do protagonista. No lugar de homens, mulheres: Charlize Theron em Atômica, Angelina Jolie em Salt e Jessica Chastain e equipe em As Agentes 355.
Apesar de bem vinda a alteração, na prática a intervenção não contém o esgotamento do subgênero. Ele ainda é sobre heróis ou anti-heróis românticos, infiltrados ou não, que trabalham para agências ou organizações governamentais, ou não, a fim de salvar o mundo de uma ameaça. Algumas vezes, a ameaça é a própria agência ou organização para a qual trabalha. E, no proceso, o protagonista tem a oportunidade de aprender que o mundo não é em preto & branco, mas em tons de cinza.
Com Agente Stone não é diferente, embora seja interessante perceber a similaridade entre o lançamento da Netflix e Missão: Impossível – Acerto de Contas: Parte 1. Ambos os filmes jogam com a tecnofobia, o medo da tecnologia moderna, de maneiras diferentes. Na recente aventura de Ethan Hunt, a inteligência artificial denominada ‘A Entidade’ desenvolve consciência e é a ameaça mundial, materializada na figura de Esai Morales. Já em Agente Stone, ‘O Coração’ é inocente. O algoritmo, capaz de controlar sistemas digitais ao redor do mundo, é a parte central da organização ‘A Carta’, formada por ex-agentes secretos e cujo objetivo é de preservar a paz no mundo.
Em uma coincidência hollywoodiana, ‘A Entidade’ e ‘O Coração’ têm habilidades preditivas. Ambas são aptas a analisar dezenas, centenas ou milhares de cenários possíveis a fim de alcançar o determinismo. Só que, enquanto em Missão: Impossível, a tecnologia era a vilã, agora, a tecnologia é o meio pelo qual pessoas tentam exercer poder. Uma convenção do subgênero.
O que Missão: Impossível tem a ensinar?
Mais curioso é que, se Ethan Hunt batia de frente contra a tecnologia (que pode ser lido como a luta do homem contra o progresso), Gal Gadot interpreta uma agente secreta d’A Carta, que utiliza o modelo analítico da inteligência artificial para maximizar sua habilidade no campo, minimizar os riscos e executar a missão. Ambas as produções partem de um ponto comum para perseguir caminhos opostos.
Em Missão: Impossível, quais as consequências de enfrentar um adversário capaz de antecipar o agir e pensar e a sugestão de como derrotá-lo. Já Agente Stone apenas ilustra o funcionamento da tecnologia a favor da protagonista. Pelo menos durante a sequência inicial, pois o roteiro escrito por Greg Rucka (de The Old Guard) e Allison Schroeder (de Estrelas Além do Tempo e Frozen II), por uma série de fatories, irá obrigar Stone a salvar o mundo à moda antiga, sem a ajuda da tecnologia ou, mesmo, contra ela.
É no roteiro que está o problema, na maneira com que ‘O Coração’ é incapaz de prever oque os espectadores podem fazer com relativa facilidade. Basta bater o olho nas lacunas deixadas na sequência inicial para pensar em voz alta: tem caroço nesse angu! E nem precisa ser especialista no subgênero para identificar quem esteja por trás disso, pois os créditos já fazem o trabalho para nós. A propósito, se ‘O Coração’ é tão poderoso, por que razão Stone precisa infiltrar-se no MI6 (a agência secreta britânica)? Qual tipo de informação poderia obter que a inteligência artificial não poderia conseguir de forma menos humana, ou sujeita a erros?
As perguntas permanecem o ponto cego de um roteiro que, naturalmente, advoga em favor da sensibilidade humana, em vez do determinismo tecnológico. É por isso que aprecio a escalação da carismática Gal Gadot. A atriz ainda conserva, em meu imaginário, os valores nobres defendidos pela personagem mais célebre que interpretou, a Mulher-Maravilha.
A execução da ação
No resto do elenco, chama atenção Jamie Dornan, brincando com a figura do espião clássico e com a expectativa de ser par romântico da protagonista, e Matthias Schweighöfer (Dieter de Army of the Dead), agora o responsável por ser a ligação entre Stone e ‘O Coração’. Sophie Okonedo e Glenn Close estão limitadas em papéis de meras personagens-objeto, sem textura, muito menos profundidade, apenas funções a desempenhar para a narrativa caminhar adiante e informações serem transmitidas ao espectador. Já a estreante em Hollywood, a indiana Alia Bhatt (de RRR: Revolta, Rebelião, Revolução), é o coração humano da narrativa, cuja mágoa é também o combustível da crítica fininha que é feita em relação a atividades de espionagem.
Até por não ser o objetivo da direção de Tom Harper. Por ser um diretor inexperiente no gênero – Harper havia dirigido o terror (A Mulher de Preto 2) e os dramas (As Loucuras de Rose e Os Aeronautas) -, as cenas de ação não alcançam o potencial que pareciam deter, mas tampouco decepcionam. A direção é característica de quem recorta, mas não picota de modo incompreensível a ação, a ponto de interferir na experiência de quem assiste. Além do mais, Harper é hábil em lidar com o espaço de encenação, clareando onde cada personagem está na geografia da cena, o tempo, trabalhando bem as bombas-relógio que acentuam a tensão, e os efeitos visuais complementares, embora não distrativos.
E ainda que haja um desapontamento natural no retrato de relance dirigido à inteligência artificial, explorada só na cena inicial para se tornar mais um pé de coelho perseguido mundo afora, Agente Stone alcança o objetivo de sua existência, que é ser o entretenimento televisivo do fim de semana por 2 horas.
Eu me entretive. E vocês?
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.