É curioso como o cinema de 2023 ficou marcado pela disputa de Barbie e Oppenheimer devido à data de estreia compartilhada entre ambas produções. A biografia do pai da bomba atômica teve como “rival” de bilheteria o mundo cor de rosa da boneca que ganha vida em telas. No que diz respeito ao recorte histórico, a obra de Christopher Nolan dialoga informalmente com Asteroid City, de Wes Anderson. No filme de Anderson, também nos deparamos com armas, ciência, uma cidadezinha no meio do nada e, pasmem, uma montagem que conjuga sequências coloridas e em preto e branco. E em ambos os filmes vemos um traço autoral forte de seus realizadores. Porém, enquanto um abraça o cientificismo como regra para materializar seu sonho, o outro envereda pela ficção e abraça a artificialidade para retratar sua perspectiva de realidade.
Asteroid City concentra a maioria de sua trama na convenção juvenil de ciências para disputar uma bolsa de estudos. Os cadetes do espaço devem apresentar suas realizações – invenções que parecem brinquedos, mas com grande potencial bélico/militar. A convenção ocorre na cidadela de Asteroid City, algo que foi construído ao redor de uma enorme cratera formada pela queda de um asteroide e que, também, muito lembra a cidade construída para abrigar os envolvidos no desenvolvimento da bomba atômica – ah, por falar nisso, o filme de Anderson também conta com o vislumbre de explosões de teste de bombas atômicas. Todos os que visitam a feira acabam tendo seus planos interrompidos pela chegada de outro e mais distante visitante. O mais interessante, é que esse trecho, que é colorido, se trata de uma peça de teatro cujo processo de produção e bastidores é revelado em uma subtrama em preto e branco.
A princípio, Asteroid City parece confuso e de difícil conexão devido à constelação de personagens e estrelas que os interpretam, além dos dois universos no qual a narrativa se desenvolve. Ainda assim, vamos ficando mais íntimos daqueles personagens que compõem a família de Augie Steenback (Jason Schwartzman), um fotógrafo viúvo que precisa contar para seus filhos a respeito da morte de sua esposa enquanto os leva para a casa do sogro milionário (Tom Hanks). Seu filho Woodrow é uma das crianças pretendente à bolsa de estudos, além de suas três fofas filhas que, apesar de possuírem nome de princesas, dispensam esse título. Também acompanhamos a célebre Midge Campbell (Scarlett Johansson), que também está a levar a filha para o evento, e os diálogos incômodos e curiosos entre esses chefes de família.
O filme traz diversas reflexões existencialistas a respeito do sentido da vida. Acredito ainda que o preto e branco espelhando o que seria o mundo real e as cores retratando o ambiente ficcional seja um artifício para refletir essa melancolia que a realidade reserva e a necessidade escapista de Anderson. Também encontramos de forma íntima o realizador em pequenas partículas de seus personagens. Sentimos seus medos e paixões, ainda que se articulem com uma apatia característica. O luto talvez seja o tema mais debatido. Mas a respeito de lidar com ele, o filme nos presenteia com uma reflexão pontual saída da boca do personagem de Tom Hanks. Apesar de seu genro não ser sua pessoa favorita, ele afirma: “Na minha solidão, ou talvez por causa dela, aprendi a não julgar as pessoas. Para aceitar as pessoas como eu as encontro, não como os outros as encontram. E, acima de tudo, dar fé completa e inquestionável às pessoas que amo”.
Asteroid City é um filme particular, mas que também reflete uma época. A saturação das cores na fotografia e figurino remontam o fim da era do technicolor no cinema dos anos 50. Vemos o culto às celebridades através da personagem da Scarlett Johansson, além da corrida armamentista e espacial que se vivia nesse período. Até a figura do cowboy está presente nesse cenário árido digno dos faroestes de John Ford. Sem contar a vigilância do Estado e o controle militarista no auge do Macartismo. Os anos 50 foram anos de uma sensação de insegurança generalizada e de uma apatia que só conseguiria dar espaço à raiva. Quando Anderson acolhe essa década para ambientar seu filme, ele abraça todas as nuâncias que ela possui. Seu filme faz denúncias sutis e em forma de humor. A incomunicabilidade que reside entre os membros da família pode ser sentida, por exemplo, com o vício em desafios de um dos meninos, que também se estende ao culto ao individualismo e a necessidade de ser especial de alguma forma. E recheados de idiossincrasias, seus personagens – com um quê de excentricidade – são sempre singulares, cada um à sua maneira.
A metalinguagem é um elemento que separa Asteroid City dos demais filmes do diretor. Nesse caso, toda a trama envolvendo aquele microcosmos no meio do deserto é fruto de uma peça. Apesar de a intensidade dramática perder o tom com a saturação das cores, esse momento de bastidores possui recortes interessantes. Quando o personagem de Adrien Brody entra em cena, temos um deslumbre sobre a paixão sobre o ofício e pela arte. É também um personagem que traz um humor digno da época também, que mistura ironia e humor corporal. O ponto alto dessa camada talvez seja o diálogo entre sacadas de Schwartzman e Margot Robbie. E como era de se esperar da simetria de Anderson, comunica diretamente com os diálogos de Schwartzman e Johansson na encenação colorida.
Entre os filmes de Wes Anderson, talvez Asteroid City seja o de trama mais rarefeita, e talvez menos envolvente, mas, ao mesmo tempo, o que mais atrai o olhar por seu esmero estético. O contraste da hiper-saturação das cores em uma camada com a estética preto e branca de outro cria um estímulo visual a cada virada. É um filme que ainda incorpora o stop motion até para amplificar o tom antinatural de um extraterrestre. Anderson brinca com todos os seus recursos e técnicas com maestria. Ainda assim, o enredo pode ser absorvido de forma morna, principalmente pelo excesso de estímulos e o engessamento de oportunidades ao priorizar os traços de autoralidade do realizador. É um dos filmes de maior potência técnica de Anderson, mas, ao mesmo tempo, os menos familiarizados, podem se sentir à deriva, e não conseguir captar as sutilezas que enriquecem o texto ou se conectar com os personagens devido ao constante ir e vir deles e em distintos universos.
Asteroid City estreou dia 10 de agosto nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.