A abertura do 17 Festival Internacional de Cinema Cine BH contou com a exibição do longa “Zé“, dirigido pelo homenageado Rafael Conde. O filme conta a vida de José Carlos da Mata Machado, líder do Movimento Estudantil Brasileiro, morto nos porões da ditadura militar aos 27 anos. O ator Caio Horowicz interpreta o protagonista e conta um pouco sobre o filme e sua filmagem. Além disso, comenta sobre o longa “Califórnia“, que também se passa nos anos de chumbo, e já foi discutido no Clube do Crítico.
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A.G.: “Vou perguntar a você sobre ‘Zé‘, mas quero trazer também um outro filme que você fez e que já discutimos no Clube do Crítico: ‘Califórnia‘. Como foi lidar com dois personagens que estão inseridos no mesmo momento histórico, mas com idades e abordagens diferentes, e com um gap de tempo na sua carreira de ator?”
C.H.: “Começando pelo ‘Califórnia‘, um filme que também está inserido no contexto da ditadura, mas também vem de um contexto de contracultura e música, tinha o JM que é uma figura de um dark de 17 anos em contraponto ao Zé que tinha 27 anos e, falando por experiência própria, dos 17 aos 27 muitas coisas acontecem. A vida dá uma virada, uma guinada. Eu tô com 27 agora e quando eu fiz o Califórnia, eu tava com 17, quando eu fiz o JM. Começa meio por aí, assim. Tudo é diferente, na real, assim. E tem uma coisa que é muito importante: O Zé é um militante da ação popular, né, diretor da ação popular. Ele foi militante, foi estudante de direito, uma pessoa que é formada na academia, que tem a família toda formada na academia aqui em BH até hoje, e foi perseguido, morto e torturado nos porões da ditadura militar em 73, com 27 anos. Então, essa diferença de duas figuras que tão no Brasil numa mesma época, é engraçado que pessoas assim existem ao mesmo tempo…assim. E o Brasil é um pouco isso… assim… é a música, é o The Cure habitando o mesmo momento que o Chico tava fazendo Roda Vida e a militância da ação popular tava viva pra cacete, e que os guerrilheiros tavam lá com Marighela. Então é legal assistir ao ‘Califórnia“, assistir “Zé“, assistir ‘Marighela‘ e todos esses filmes que estão no mesmo contexto para entender qual que era o cenário do Brasil na época nos diferentes sentidos culturais, políticos e… assistam ‘Zé’ por que o ‘Zé‘ é um trabalho assim… muito…acho que o ”Califórnia‘ tem uma certa…frescor na atuação. O ‘Zé‘, por outro lado, é um trabalho de atuação com muito mais…com escolhas formais muito mais decididas assim…eu acho que o Rafa (Rafael Conde) é um diretor que faz escolhas estéticas muito específicas, planos abertos, tem muito texto quase literário no filme. Assim, tem um esforço da atuação de lidar com um tipo de palavra no texto…e que no ‘Califórnia’ era o tipo de um naturalismo, que era outra coisa, assim. Então, no ‘Zé’ tinha as cartas que o Zé mandava pros pais na clandestinidade que eu leio pra câmera direto em um plano fechado. Assim, tem algumas cartas no filme. Então foi um desafio de atuação em outro nível, no sentido oposto, é… e outro tipo de atuação que não necessariamente é super naturalista. Assim, eu também quero vocês vejam e me digam o que acharam.”
A.G.: “O ‘Zé’ é um filme cuja questão do formalismo é muito forte, principalmente o que diz respeito à fotografia e à mise-en-scène. Em momentos do filme você tem que passar uma sensação de clausura e seu personagem está posicionado mais ao fundo do quadro, como se escondesse em meio às sombras. E precisa trabalhar nos pequenos espaços transmitindo uma dramaticidade com poucos gestos que possuem grande importância. Eu gostaria que você comentasse a respeito dessas marcações do ator.”
C.H.: “O Rafa fez questão de fazer praticamente o filme todo em plano aberto, o que pra gente, enquanto ator, é um tipo de desafio também por que não tinha corte. Nunca houve corte, assim, de plano e contra-plano. Então, em alguma medida, tem uma escolha formal do Rafa (Rafael Conde) aí que é teatral em bom sentido em que a gente têm que lidar… é um desafio de atuação que a gente têm que lidar com takes únicos, às vezes. E o Rafa (Rafael Conde) é um diretor que não gosta de ficar repetindo muito. Assim, a gente fazia um, dois takes. As vezes era uma cena longa de dois minutos, três minutos. Então isso começa por aí também. O que você falou de a figura que fica sempre mais atrás, mais enclausurada… Os ambientes são muito importantes no filme. A direção de arte dele, inclusive, ganhou o prêmio de edição de arte no Festival de Curitiba. Tem uma escolha também de contar a história do Zé também pelos lugares por onde ele passou. Assim, eu acho que é uma escolha formal de definir esses planos abertos assim. E também o filme vai ganhando uma coisa que, por exemplo, no final, quando tem uma cena na Santa Tereza que está Zé e Grauninha numa casa e eles estão no momento mais decisivo. Eles estão presos na casa e a polícia está fora da casa, e eles não podem sair. Essa é a única cena que tem um plano fechado. Tem um plano em mim, tem um plano na Samantha (Jones) que são os únicos planos fechados do filme sem ser o das cartas, né. E é um momento de muita intimidade. É um momento que a gente vê, assim, a derrota. A gente vê a emoção. A gente vê o sangue no olho dessas figuras. E é o momento que a gente conhece mais a fundo a história dos dois. É… mas sim, isso que você comentou, eu ainda não tinha pensado nisso do enclausuramento da figura. Assim, é uma coisa a se pensar, mas que faz super sentido. Assim, por que eu acho que o filme, ele vai te colocando nesse lugar. Sim, ele começa… como se fosse uma história de amorno começo e vai… E, de repente, começa a entrar numa trama que você fala ‘opa! Tem alguma coisa errada acontecendo’, e quando você vê a figura, é isso: ele vai ficando mais magro. Ele vai ficando mais enclausurado, mais perseguido. E eu acho bonito que o Rafa (Rafael Conde) faz é que ele vai dando pistas aos poucos. Assim, é sutil. Mas por ser sutil, e é como é por que é silencioso. A ditadura no filme é silenciosa. Não tem cenas de tortura explicita. Não tem cena da policia pegando nas pessoas, arrancando as pessoas dos lugares. Ela é silenciosa. E eu acho isso uma boa escolha também.”
A.G.: “Outra coisa que eu gostaria de comentar com você: Apesar de ser um filme de tratar da ditadura e, como você falou, ela não é tão explícita com a questão da violência, ele trata bastante da constelação familiar, da vida familiar. Apesar de estarem clandestinos. Onde você achou mais dificuldade em vivenciar esse momento de uma família vivendo nessa clandestinidade? Em ainda assim tornar o “Zé” um filme sobre afeto, sobre essa parceria dentro desse momento da história?”
C.H.: “Cara, pra mim o que me ajudou muito nesse tema da família foi, de fato, a família do Zé. No processo de preparação a gente teve muito contato, principalmente com o Bernardo Mata Machado, o irmão do Zé, com a Edith, a irmã mais nova. Eu tive contato com o Sá Marone (Lima), que não é da família, mas foi quem escreveu o livro (Zé). Eu tive muito contato também com a Grauninha, a Maria do Socorro, que não era da família, mas foi uma pessoa que ficou com o Zé ali durante grande tempo da militância e que é uma figura central do filme. E aí, a família me apresentou vários materiais, me contou várias histórias, principalmente as cartas que o Zé mandava pros pais na clandestinidade, e para a família, pros primos, pras tias. E aí, essas cartas que são, acho que cinco no filme… têm pelo menos umas vinte cartas. Dava pra fazer um livro com elas. As cartas são lindas. Ele era de um talento literário, escrevia super bem. Essas cartas que foram o material em que eu consegui chegar, assim, na alma da figura. Pude entender que a família era algo muito central pra ele, tanto que ele não abriu mão de ser pai, mesmo na clandestinidade. (Ele) teve um filho, cuidou de um filho que não era dele, né, era da Madalena, mas que virou dele. Então… era uma figura que tinha compaixão como a frente da luta. Não era uma figura que escolheu pegar em armas, mas era uma figura que tinha a compaixão e a necessidade da educação na frente da luta. Cara, (ele) era uma figura muito inspiradora que eu realmente desejo que o Brasil conheça e espero que o filme reverbere muito bem.”
A.G.: “Última pergunta: Como ator, qual foi a cena mais difícil de gravar, aquela que exigiu mais?”
C.H.: “Como ator a cena mais difícil de gravar…as cartas era muito difíceis por que são calhamaços assim (dimensiona com as mãos afastadas) de texto. E eu fiz uma escolha junto com o Rafa de preservar uma formalidade da carta. Assim, de… (Bertold) Brecht tinha uma coisa assim de uma atuação distanciada. Tipo, você vê o ator, mas você vê também o material pela atuação, né. Assim, então, era difícil por que eu tinha quis preservar as palavras como elas eram na carta e (eu) tinha que decorar. Aí (eu) tinha que dizer com o sotaque mineiro que não é um sotaque meu. Tinha que entender cada palavra que eu dizia o que (ela) significava. Então isso era muito difícil. Mas tem uma cena que eu amo. Particularmente é a minha preferida. É a cena de Santa Tereza quando o Zé tá com a Grauninha no quarto e foi uma cena toda reescrita por mim e pela Samantha (Jones), e muito improvisada também. E eu acho que é uma cena lindíssima. Nossa! Eu parei pra assistir quando ela tava fazendo a cena e, em cena eu ‘que que é isso que tá acontecendo?’. E eu acho que o meu trabalho ali também é legal e eu quero que vocês vejam e me comentem o que foi que vocês acharam.”
Entrevista concedida ao Alvaro Goulart, para o Cinema com Crítica, no dia 27 de setembro de 2023.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.