As Quatro Filhas de Olfa é um documentário que nos aproxima de uma realidade distante da nossa. De uma Tunísia que pouco conhecemos, emerge a história de uma mãe e suas quatro filhas. Com um formato híbrido, o diretor Kaouther Ben Hania reconstrói os eventos da vida dessas mulheres enquanto faz um recorte sobre a história do país. A narrativa é genuinamente feminina, e traz questionamentos a respeito de casamento, maternidade, família, dogmas religiosos e sororidade.
O longa de Hania remete ao trabalho de outro gênio documentarista: Eduardo Coutinho. Em Jogo de Cena, vemos atrizes dando rosto e voz às histórias de mulheres anônimas. Para ilustrar alguns acontecimentos e conferir realismo, alguns eventos são encenados em As Quatro Filhas de Olfa. Acompanhamos a dinâmica de uma Olfa real e um Olfa fictícia, que ainda realizam trocas a respeito de maternidade e casamento. Também temos a participação de duas atrizes que preenchem a lacuna deixada pelas duas filhas mais velhas, Ghofrane e Rhama. Dessa maneira, o filme desenvolve sua metalinguagem enquanto exibir o processo de realização em um ambiente de conversas, compreensão e acolhimento.
É intrigante ver o processo de filmagem do documentário ao mesmo tempo que a história dessas mulheres se desenrola. Enquanto espectadores, estamos praticamente num lugar de confidente dessas mulheres que nos permitem acessar seus sentimentos mais íntimos enquanto revivem seus momentos mais traumáticos. Olfa conta a respeito de seu casamento arranjado e da maneira com que seu antigo marido a tratava e, em seguida, as suas filhas. Também conta de seu romance com um fugitivo político e o convívio das meninas com esse homem. Suas filhas mais novas, Eya e Tayssir, falam da criação rígida, de como eram suas irmãs e como viam essas figuras “paternas”. Apesar de muitas violências e momentos conturbados, nos deparamos também com sorrisos e risadas durante esses depoimentos.
Mas a história de Olfa e suas quatro filhas vai se tornando mais densa ao passo que discute a questão do extremismo religioso. Escavamos a história delas, enquanto um pouco da história da Tunísia é contada. A influência de líderes religiosos extremistas sobre o pensamento dessas mulheres está ligada diretamente ao uso do véu islâmico. É contando sobre seu uso que Olfa, Eya e Tayssir descrevem como Ghofrane e Rhama foram aliciadas pelos “lobos”. A revelação de que ambas deixaram sua família para servir ao Estado Islâmico na Líbia é chocante. Duas adolescentes, que apesar de suas experiências distintas, possuem os mesmos anseios e sonhos que outras da sua faixa etária, são convertidas em fundamentalistas por meio de uma lavagem cerebral que as doutrina a temer apenas a ira de Alá. Mais impressionante é perceber que ainda que exista um ódio coletivo contra suas filhas, encaradas como terroristas pelo mundo, Olfa e suas caçulas ainda as enxergam com o mesmo olhar. E lutam para que o mundo as vejam com humanidade.
As Quatro Filhas de Olfa é um documentário que brinca com o conceito de real e fictício. Pois da mesma maneira que encena fatos, mostra reações genuínas em seus bastidores. Seu caráter híbrido reúne mulheres, atrizes e personagens, em um mesmo espaço, mas para além, costura todas elas em uma mesma narrativa por meio de um abraço acolhedor onde as trocas são genuínas. É um documentário que denuncia como o extremismo pode corroer uma família. Mas também nos desafia enquanto espectadores quando, após estabelecer um vínculo com a história dessas mulheres, coloca nossa humanidade em cheque para olharmos com alguma empatia a figura das filhas condenadas, ainda que abominemos suas ações. Afinal, as filhas de Olfa são vítimas do mundo, assim como sua mãe.
As Quatro Filhas de Olfa recebeu o prêmio de melhor documentário no Festival de Cannes e foi exibido no 25º Festival do Rio.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.