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Propriedade

4.5/5

Propriedade

2022

100 minutos

4.5/5

Diretor: Daniel Bandeira

Após passar por um evento traumático, Tereza é levada pelo marido à fazenda da família em seu novo carro blindado. Contudo, a viagem de paz e tranquilidade se converte em um novo pesadelo com o levante dos trabalhadores da fazenda contra seus patrões. A violência escalona com o desenvolvimento da narrativa que, desde seu início, escancara o seu clima de tensão.

Nos primeiros minutos, assistimos ao que parecia se tratar de mais um registro cotidiano de violência nos grandes centros. A filmagem feita por celular de um sequestro em andamento confere ar de realidade ao mesmo tempo que antecipa o nível de violência que será exibida no filme. Em seguida, nos defrontamos com a figura de Tereza e, graças ao raccord aliado ao seu olhar de pavor, entendemos que ela era vítima no vídeo.

O estado emocional de Tereza (Malu Galli) é evidenciado também pelos aspectos formais no filme. Sua desconexão do mundo é sentida quando sua imagem é separada do ambiente externo por uma faixa formada pela lataria do carro. Seu medo também está presente na sensação de ser observada. Durante os créditos iniciais, esse sentimento é vivenciado com a filmagem da estrada em ritmo acelerado – atenção à presença do retrovisor dentro do quadro provocando uma possível perseguição. A imagem, inclusive, é congelada abruptamente quando um carro se aproxima na outra pista. Toda essa tensão é acentuada pela trilha musical que rege o ritmo da narrativa e também marca os jump scares.

O pânico que reside no olhar de Tereza.

A chegada à fazenda traz um contraste com a imagem dentro do carro. Os planos abertos evidenciando a extensão do terreno conflita com o espaço claustrofóbico do veículo. Ainda assim, ambos promovem o isolamento dos indivíduos, o primeiro por funcionar como uma câmara hermética e o segundo por transformar a casa em uma grande ilha em um imenso mar de vegetação. As primeiras cenas na casa também dão pistas sobre os acontecimentos que vão se suceder, como a ausência de um retrato na parede ou a presença de um carrinho de brinquedo sobre a mesa. Nossa percepção a respeito do termo “propriedade” também é colocada em xeque. Ora por se confundir com uma prisão (tal qual em A Jaula e Quarto do Pânico), ora por discutir o domínio sobre o outro. Vale ressaltar que muitos dos trabalhadores compartilham da mesma cicatriz – que remete à marcação feita em gado. A menina que busca o vestido possui no rosto enquanto a senhora a quem o medicamento se endereçava guardava a marca na palma da mão.

O cenário rural é palco da luta de classes, como em uma extensão de Casa Grande e Senzala. A abordagem, contudo, não é simplista. Tão pouco maniqueísta. O diretor e roteirista Daniel Bandeira coloca dois mundos em colisão e mostra que a linha que divide a humanidade da bestialidade é tênue. Confesso que sou simpático ao lado menos favorecido. Inclusive, sou consonante a frase “Não confunda a revolta do oprimido com a violência do opressor”, de Malcolm X. Ainda assim, fui empático com Tereza em diversos momentos ao longo do filme. O choque entre esses dois mundos é sentido na imagem. Tereza e seus perseguidores estão sempre separados por algum elemento no quadro, ou estão posicionados em diferentes planos. Até o primeiro conflito entre trabalhadores e Roberto remonta o duelo à mexicana de Três Homens em Conflito, contando com as trocas de olhares e do uso do plano e contra-plano. Em nenhum momento o filme busca um lampejo de conciliação.

O “duelo” entre patrão e funcionários digno de um faroeste.

É curioso como o diretor subverte alguns estereótipos dentro do filme. A começar por Roberto (Tavinho Teixeira), marido de Tereza, que inicia o filme como um sujeito que não aparenta oferecer ameaça a ninguém. Quando percebe que houve uma tentativa de arrombamento ao cofre da fazenda, imediatamente pega uma carabina. Antônia (Zuleika Ferreira), uma mulher que inicia seu dia vestindo um terço e beijando o crucifixo, não abre mão da violência como recurso. Dimas e seu sobrinho Zildo aparentam ser homens humildes, calmos e de poucas palavras. Mas são aqueles os responsáveis pelas maiores cenas de violência dentro do filme. Até mesmo Tereza não é apenas uma “madame” totalmente fragilizada e indefesa.

Propriedade ilustra que as pessoas conseguem ultrapassar a barreira da civilização quando se enxergam isolados em uma situação de sobrevivência. Dimas, por exemplo, se converte em uma figura bestial quando o zoom out da câmera revela o estado em que deixou o cavalo da fazenda, ou quando persegue Tereza no curral. Essa última parece uma reencenação do mito do labirinto do Minotauro, com a inspiração gore de O Massacre da Serra Elétrica.

Também é intrigante como a sequência de eventos denota uma espécie de revanchismo, “olho por olho”. Zildo desfigura o olho do patrão com coronhadas da carabina, mas, quando tenta atirar em Tereza, seu olho é alvejado pelos fragmentos de projétil que ricocheteiam no vidro blindado do carro. Tereza, por sua vez, tem as mãos feridas por seus agressores e não se apieda da criança que fica com os dedos preso na porta do carro durante sua fuga.

Ao analisarmos a figura de Tereza e Antônia, podemos encará-las como duas faces da mesma moeda. Ao mesmo tempo que estão em lados opostos, suas vivências convergem em pontos em comum. Ambas são mulheres invisibilizadas por seus companheiros. Antônia foi alienada dos problemas relacionados à fazenda por seu marido, e colocada à sombra do mesmo ainda que depois de morto. Tereza também é alienada sobre a gerência da fazenda por Roberto, não estando a par da situação dos trabalhadores. E ambas, diante da situação extrema, encontram suas respectivas forças interiores para sobreviver dentro desse conflito.

Antônia, que lidera o grupo de trabalhadores apesar de ainda ser colocada sob a sombra do marido falecido.

Além de trazer discussões políticas sobre reforma agrária, direitos trabalhistas e a luta de classes sob uma lente que transcende um discurso maniqueísta, Propriedade ilustra a tese “O homem é o lobo do homem” (homo homini lupus), proposta por Plauto e popularizada por Hobbes. Para além, traz como o jogo de predador e presa pode ser subvertido e também como podemos romper com a civilização quando em controle do outro e para garantir nossa sobrevivência, principalmente em um cenário hostil estimulado pelo capitalismo. E ao trazer todas essas discussões, o faz de forma visceral e emocionante através desse drama com perseguição que não nos permite piscar ao longo de seus 100 minutos de duração.

Propriedade foi assistido no 17º Festival Internacional de Cinema Cine BH

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1 comentário em “Propriedade”

  1. Pingback: Bate papo com Malu Galli e Zuleika Ferreira • Cinema com Crí­tica

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