Documentários como Architecton obrigam o espectador a experimentar o poder da imagem e renunciar a dependência de matérias primas narrativas convencionais, por assim dizer. É uma reflexão proposta pelo russo Victor Kossakovsky (do maravilhoso Gunda) convergente com a do protagonista, o arquiteto italiano Michele de Lucchi, que critica a dependência da sociedade ao concreto armado – somente menos usado do que a água – em detrimento de rochas, matérias primas naturais. Assim, forma e conteúdo estruturam-se inseparavelmente, com Kossakovsky e Michele proporcionando um ensaio efetivo sobre a natureza da arte e a sua desfiguração, com o ‘empacotamento’ em um produto comercializável.
O arquiteto pondera sobre a durabilidade e a falta de beleza das edificações arquitetônicas modernas que ornamentam os centros urbanos, a partir de um exemplo simples, mas direto: a construção de um círculo de rochas no meio do jardim de sua casa, desprovido de função senão o fato de existir e provocar uma reação emocional naquele que a observa. A direção coloca isto em prática ao desnaturalizar muitos elementos através dos quais o público está habituado a ‘consumir’ a imagem, em favor de uma abordagem que não subestime a nossa capacidade de sentir. As imagens de uma cidade (qual cidade?, não sabemos) em ruínas (o que acarretou isto, a guerra, um terremoto?, também não sabemos) estão acompanhadas pela trilha sonora de Alexander Dudarev. O poder das imagens não depende de nada, salvo da materialidade delas próprias. São hipnóticas e até contraditórias, porque almejam o ‘belo’ em um mundo de caos.
A autossuficiência da imagem é explorada mais por Kossakovsky ao despi-la de legendas que poderiam ancorar a experiência do espectador. Apenas sabemos que o diretor estava nas ruínas de Baalbek, no Líbano, e em uma cidade na Turquia vítima de um terremoto pela sinopse, não pela imagem. A imagem desterritorializada, digamos, é atemporal e universal, alcança o espectador não pelo que retrata, mas como retrata. A experiência não é dirigida pela sensibilidade ou empatia por este ou aquele povo, mas pelo que as ruínas representam em termos de uma negativa da arte, que paradoxalmente é retrabalhada artisticamente pela visão da direção em uma outra forma de arte.
A partir da estrutura bem armada, Kossakovsky introduz as construções históricas, os arcos de pedra sustentados em uma artesania geométrica, os fortes cuja arquitetura construtiva é tão impressionante quanto o fato de ainda permanecerem em pé ou uma escultura rochosa e cuja existência permanece um mistério para o arquiteto. Por que, em vez de evoluir para padrões construtivos mais belos e duráveis, a sociedade regrediu a edificações com prazo de validade inferior a meio século? É o mesmo tipo de questionamento que alguém poderia fazer ao pensar na arte de ontem e de hoje: enquanto uma máquina de derrama concreto (a inteligência artificial, portanto) de modo mecânico e automatizado, obediente à programação e não à intenção, um arquiteto traça o círculo na terra, seleciona as pedras, sofre e aprecia o que pôde construir.
Esse processo artístico é compartilhado por Kossakovsky, ao elaborar os diálogos entre as imagens: uma árvore derrubada na clareira, semelhante à pena de um escritor repousando sobre uma escrivaninha, é montada junto com a imagem do arquiteto sob uma outra árvore. Noutro momento, a pedra cai de um ‘balanço’ onde estava perfeitamente equilibrada para, em seguida, a imagem de um prédio tombado sobre um carro. Talvez Kossakovsky queira expressar a ideia de que a construção moderna é uma edificação montada sobre um frágil ponto de equilíbrio, ou talvez apenas julgasse interessante a combinação das imagens. É aí o maior barato de Architecton: o convite feito ao espectador para sentir, perceber e prover a significação individual a imagens que, repito, detêm significados inerentes. O epílogo auxilia ao expor o pensamento do arquiteto, comungado pelo diretor que, diferentemente, não fala através de palavras, mas de imagens.
E que imagens!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.