Orquestra Vermelha era o nome dado à rede de alemães contrários ao regime nazista, alimentados ou não por ideais soviéticos, e perseguidos pela Gestapo, a polícia secreta para serem levados a julgamento e condenados, muito certamente, à morte. From Hilde, With Love explora, dentro do típico heimat para onde o Alemão se refugiou depois do fim da guerra para tirar ‘férias da história’, a resistência até um tanto amadora que a protagonista, Hilde Coppi (Liv Lisa Fries), integrou em 1942 antes de ser aprisionada, grávida.
A narrativa é dirigida por Andreas Dresen, cujo trabalho anterior, a dramédia biográfica Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush (2022), conquistou prêmios no Festival de Berlim 2022 – a minha primeira participação no festival, a propósito. Não dá para realizar comparações, já que a dimensão histórica de From Hilde, With Love contrasta com a pegada bem humorada de Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush, do mesmo modo que a iluminação naturalista de um palco bucólico conflita com o retrato caracteristicamente frio, hostil e dessaturado da prisão para onde Hilde é enviada. A propósito, não há melhor símbolo que o morango de vermelho vivíssimo abocanhado por Hilde, da mesma forma que a simpática e corajosa protagonista também seria pelo regime nazista.
Hilde está no centro de meu desconforto com a narrativa, um burocrático drama histórico nazista pelo qual o cinema alemão é conhecido internacionalmente. Interpretada por Liv Lisa Fries, Hilde é melhor definida pela maneira com que se ergue diante de circunstâncias eufemisticamente desfavoráveis. Ela dá a luz ao filho, Hans, na prisão, auxilia as mulheres a seu redor e conserva uma postura ‘mariana’, resoluta, convicta. E talvez aí esteja o mal da narrativa: Hilde é somente boazinha demais. E não é que esteja caçando falhas de caráter e controvérsias dos personagens para arrotar quão complexos são na crítica, mas momentos em que a bondade é desafiada pela fragilidade humana.
Até existem oportunidades iguais a essa em From Hilde, With Love – um destes é a portas fechadas e reforça que mesmo quando o espírito de Hilde quebra, nós não testemunhamos e partilhamos da dor, mas ficamos afastados dela. Isto é reforçado na abordagem estrutural que subdivide a narrativa em duas metades: uma quando Hilde conhece Hans, o pai de seu filho, e outra na prisão. Em ambas as metades, com atributos estéticos de fácil significação, as aparentes fragilidade, ingenuidade e passividade de Hilde são desafiadas pela força que demonstra diante de estresse e pela agência. Só que aí, tudo isso vem ao chão quando é indagada pelo tribunal a razão de ter atuado contra o Estado: por amor, explica.
É sugestivo como uma linha de diálogo no roteiro de Laila Stieler pode sabotar praticamente o desenvolvimento da personagem, retirando-lhe suas convicções – ao menos as abalando – ao torná-las reféns do amor que sentia por Hans. Além de contradizer a figura ilustrada pela direção, é ainda um desserviço reduzir o comprometimento da personagem de fazer o que é certo a fazê-lo em nome do amor. A isso, somam-se convenções que, se isoladamente não prejudicam a narrativa, conjuntamente resumem-na em um clichê. Há a funcionária prisional que, após antagonizá-la, reconhece a humanidade em Hilde em razão de suas atitudes; há o pároco que oferece consolo muito além do que trechos retirados da Bíblia. Não pense que esqueci os revolucionários idealistas, de relacionamento aberto e sexo livre, que mal notam a dimensão daquilo em que estão envolvidos para tomar as precauções necessárias.
Desconhecia Hilde Coppi, analogamente a alemães que talvez desconheçam Bertha Lutz, e continuo sem conhecê-la. Posso adjetivá-la pelo que a narrativa demonstrou, mas não sei o que pensava nem o que sentia, senão os pensamentos e sentimentos convencionais de heroísmo, coragem, determinação e força que filmes iguais a este tendem a inspirar. É uma mulher que permanece inacessível, igual a tentativa de um bebê reconstituir o rosto da mãe da qual foi separado na infância, aprisionada dentro de um drama histórico sem atributos estilísticos e narrativos que mereçam maior destaque.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.