“Minha geração herdou essa história”.
Um cinema infanto-juvenil provavelmente jamais será realizado por crianças e adolescentes, mas por adultos que decantam seus olhares e anseios em relação à geração subsequente ou que refletem sobre suas gerações com um distanciamento suficiente para que seja um olhar alienígena à própria existência. Eu, um adulto de 40 anos, tenho uma relação ambivalente de medo e esperança de que a geração Z (é isso, não?) será capaz de resolver os problemas criados na história e terceirizados para o dia de amanhã que nunca chegou. A crise climática, a ascensão do neo-fascismo, o capitalismo predatório, a discriminação etc são medos concretos o bastante para nós o encararmos individual e coletivamente, mas deixar para amanhã (até ser tarde demais) costuma ser a resposta mais cômoda.
Esse comportamento cria jovens adultos e ainda revela adultos iguais àqueles de Langue Étrangère. No primeiro caso, jovens cuja responsabilidade social normalmente alimenta ansiedade e depressão; no segundo caso, adultos desesperançosos cujos problemas individuais os cegam ao coletivo. Este ciclo vicioso repete-se a cada duas décadas: os últimos passam a ser culpados (com alguma razão) pelos problemas que os primeiros não resolverão, porque é humanamente impossível fazê-lo. É uma tradução mais complexa do que a idiomática do francês para o alemão, ou vice-versa, a de traduzir a angústia geracional para que uma outra empatize. É um trabalho realizado com razoável destreza pela diretora Claire Burger, a partir de uma situação concreta, e facilmente transportada a contextos variados.
Fanny (Lilith Grasmug) é uma adolescente francesa, com problemas familiares e escolares e anseios que a levam à ideação suicida, que viaja à Alemanha num programa de intercâmbio, onde conhecerá Lena (Josefa Heinsius), com problemas familiares particulares oriundos da dificuldade de a mãe lidar com a separação do marido. Esse intercâmbio França-Alemanha (a cooperação entre nações) é um gatilho para Fanny desabrochar, libertar-se de amarras sociais e expor uma patologia compensatória da insegurança emocional que sente, e, no sentido contrário, é a oportunidade para Lena dirigir a sua raiva e inconformismo de forma produtiva. É uma relação de mútuo crescimento, que, para tal, exige que feridas sejam expostas e traumas elaborados e perdoados, e que justifica a atmosfera esfriada e onde há raros estímulos além de um azul esmaecido da fotografia de Julien Poupard.
Fanny e Lena, da rejeição e estranhamento iniciais, desenvolvem uma proximidade afetiva saudável para a segunda e dolorosa para a primeira, que precisa formular uma máscara que não tem para que pareça interessante aos olhares dos outros. Isto é feito em uma estrutura narrativa eficaz, subdividida no intercâmbio França-Alemanha e vice-versa, e que muda o olhar (a instância narrativa, se preferir). É o olhar de estrangeiro que orienta o espectador: é o olhar de Fanny na Alemanha, é o de Lena na França. Faz muito sentido ser assim, pois o olhar de Claire é também estrangeiro em relação àquela adolescência que não lhe pertence, embora investigue. Assim como são estrangeiros os olhares que penetram nos dramas dos personagens, tal como realiza Lena ao chegar a Estrasburgo e notar que a existência familiar de Fanny não é perfeita quanto idealizou.
É uma sensação parecida com o momento em que Fanny e Lena acreditam poder tocar no maleável céu bicolor e romper a barreira que separa identidades e vivências diferentes, mas que optaram por encontrar um ponto médio em comum. Dentro desse panorama até convencional, em termos de uma narrativa de amadurecimento emocional e sexual, e de experimentação e descoberta, é um bálsamo a dinâmica estabelecida por Lilith e Josefa, atrizes cujos olhares e toques estabelecem uma relação de confiança e sensibilidade indispensável para que a narrativa funcione adequadamente. Enquanto isso, o elenco adulto encabeçado por Nina Höss, Chiara Mastroianni e Jalal Altawil aproveita o que o roteiro oferta para enfatizar a influência dos pais no desenvolvimento emocional dos filhos, logo, da geração anterior na formação da geração contemporânea. Não é a embriaguez de Susanne durante um jantar de família, nem a briga a portas fechadas de Antonia, mas as ausências e indiferenças que constroem um ambiente suscetível para uma adolescência angustiada e inconformada.
Até acredito que Claire Burger seja esperançosa demais ao acreditar que a juventude ilustrada por Fanny e Lena é aquela que poderá restituir a esperança à humanidade. Que a união e resiliência de um elo do amor e da amizade seja capaz de derrubar os muros que separam a sociedade (não é em vão que é citada a queda do Muro de Berlim) por um objetivo em comum. Mas, ei, quem sou eu para criticá-la por um otimismo que também gostaria de sentir com maior frequência?
Langue Étrangère pode até não ser um grande filme, em termos estéticos, mas certamente é um que é capaz de devolver um cadinho de alegria em relação ao amanhã.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.