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Cidade; Campo

4/5

Cidade; Campo

2024

119 minutos

4/5

Diretor: Juliana Rojas

Juliana Rojas tem uma carreira de valorização do cinema de gênero, da fantasia, do horror e até do musical, sem que a expressão de gênero esteja em segundo plano e seja um embaraço à dramaticidade a temas urgentes da atualidade como acontece em muito do cinema erroneamente denominado de ‘terror elevado’, ‘pós-horror’ ou qualquer denominação que sugira a existência de um ‘terror inferiorizado’ o ‘pré-horror’. Trabalhar CansaAs Boas Maneiras – os dois em parceria com Marco Dutra – e Sinfonia da Necrópole até discutiam temas sociais, não a despeito do gênero, mas em função dele. Cidade; Campo amadurece ainda mais o estilo da diretora com metades tonal e narrativamente independentes, embora relacionadas tematicamente.

Joana (Fernanda Vianna) foi obrigada a se deslocar do campo à cidade, após o desastre ambiental de Mariana ter destruído o seu estilo de vida, sem nenhuma promessa de reparação dos danos por parte da empresa responsável. Ela recorre à irmã Tânia (Andrea Marquee), que mora com o neto Jaime (Kalleb Oliveira) em São Paulo, e auxilia nas contas do lar com um trabalho de diarista para uma empresa análoga à Uber ou iFood. Diferentemente dela, Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) partem da cidade ao interior do Mato Grosso para tomar conta da fazenda da primeira, a sua herança depois da morte do pai. O que reúne as histórias não é um elemento causal – a exemplo de As Boas Maneiras, em que as metades eram separadas por um evento seminal -, mas sim uma conexão espiritual vislumbrada no fluxo migratório e na transformação que este proporciona. E ainda nas manifestações sobrenaturais testemunhadas.

Cada história é poderosa o bastante para existir isoladamente, embora somente juntas expressam a força da narrativa. A cidade, um ambiente aterrado, pé no chão, em que o sobrenatural está implícito e é sugerido; já o campo, um ambiente mais convidativo a elementos fantásticos, abriga, na floresta de memórias enraizadas que sufoca a propriedade familiar como um torniquete, presenças explícitas e não aterrorizadoras. O livro (que creio ser fictício) Mundos em Simetria é o elemento sugestivo pelo qual é articulado o discurso. Na cidade, uma crítica ao capitalismo exploratório que tanto desenraiza Joana quanto perpetua a manutenção da insegurança laboral, ante ao fato da empresa não assumir a responsabilidade pela violência sofrida por uma funcionária. No campo, a exasperação do onirismo, do desconforto de uma propriedade familiar transformada em não-lugar, onde Flávia e Mara parecem não pertencer, onde nada nasce, apenas morre.

Por isso que o contato com a terra é tão importante à narrativa, a mão de Joana colhendo ervas daninhas ou Jaime sentindo a terra sob o pé, ou então Flávia trabalhando a terra e Mara ordenhando a vaca, trabalhando finalmente na formação em que se graduou. A corporalidade, reforçada pelo dar de mãos e pelo contato de corpos, atrita com a espiritualidade e a intangibilidade. Cria uma dimensão de vigília, em que não há realidade nem irrealidade, em que se está simultaneamente acordado e sonhando. É um efeito alcançado pela montagem de Cristina Amaral, que sobrepõe, no real, sonhos, e provoca um limiar de estranhamento, reforçado pela edição sonora de Tiago Bello, que potencializa os sons do campo e, sobretudo, os silêncios.

Nesse mundo idealizado por Juliana Rojas, em que comungam real e fantasia, presente e passado – na forma de memórias espectrais que permanecem -, cabe ao trio de atrizes legitimar este conceito. Apesar de desconcertada pela voz que escuta e não reconhece de onde vem, a Joana de Fernanda Vianna adota uma postura materna ao exigir a responsabilidade da empresa de diaristas, do mesmo modo como gostaria de ter feito em relação à Samarco (responsável pelo rompimento da barragem). Já Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer exibem o companheirismo afetivo e íntimo ao som de Leandro e Leonardo – inclusive, é uma assinatura da diretora; e quem esquece de Marjorie Estiano dançando Chora, Me Liga? – e, depois, a alienação durante a ingestão de ayahuasca ou a dança de uma Mara hipnotizada.

Preciso retornar à direção, que respeita o gênero da mesma forma como respeita o tempo de cada sequência. Nada em Cidade; Campo acontece de uma forma imediatista. Até mesmo em São Paulo, há um convite à observação paciente, porque Joana trouxe essa virtude em sua ‘bagagem’. Inclusive, dá para brincar que há um ‘mineirismo’ no estilo de Juliana Rojas, um alívio em um gênero associado a estilos visuais e sonoros característicos (o jump scare, por exemplo). É que os fantasmas dela não querem aterrorizar, pelo contrário, parecem guiar os personagens por entre os caminhos tortuosos de suas inseguranças e dores, de seus traumas e lamentos.

São os Virgílios de movimentos migratórios de um olhar externo para um olhar interno.

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1 comentário em “Cidade; Campo”

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