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Caught By The Tides

3/5

Feng Liu Yi Dai

2024

111 minutos

3/5

Diretor: Jia Zhang-ke

A reflexão acerca do processo criativo de Caught by the Tides é importante para a compreensão da ambição artística do diretor Jia Zhang-ke porque respinga no tema da obra, que é o tempo, a matéria prima cinematográfica. Durante a pandemia de Covid-19, Jia revisitou as imagens de arquivo que fotografou de 2001 em diante, um processo que requereu a reavaliação do valor material e emocional contido nessas imagens, e as costurou de forma artesanal com as filmagens contemporâneas. Este tempo de 21 anos, um tempo de maturação, conferiu às imagens propriedades que não possuíam antes de serem convertidas, a exemplo da granularidade que confere o aspecto chuviscado.

O tempo não é somente valor estético, é também narrativo, pois a história de amor entre Qiao Qiao (Zhao Tao) e Guao Bin (Zhubin Li) é definida pelo desaparecimento deste em direção à cidade e o tempo exigido para o reencontro. Uma jornada épica, eu diria, de Qiao Qiao pela sociedade chinesa em transformação e por eventos que a remodelaram definitivamente, por exemplo, o desastre ambiental da inundação de uma cidade e a realocação dos habitantes até a consolidação do TikTok como forma de expressão e comércio. Qiao Qiao, por consequência a câmera de Jia Zhang-ke, caminha pela China como se fosse um fantasma à procura de um elo com o mundo real.

Apesar de haver harmonia entre o discurso poético ilustrado em imagens e canções e a trajetória da protagonista, cuja expressividade é subtraída mas não ausente, tive uma relação intelectual, em vez de sensível. A estética de “quadros vivos” de Jia Zhang-ke, do desfile de moda à festa eletrônica, da boneca Barbie (ou análoga) nos escombros à ilustração da missão espacial, desumaniza esta jornada no tempo. Ele a robotiza. O que é contraditório, pois a arte é um produto humano, e a contraprova do que falo é a sequência em que Qiao Qiao tenta deixar o ônibus e é interrompida repetidas vezes. Esta repetição parece um eco, e deste eco há uma forte emoção ausente no restante da narrativa.

Veio-me à mente a menção de um autômato: “Minha vantagem é que não tenho tristeza”. A frase é coerente com a sociedade capitalista, e a narrativa, por ilustrar o amadurecimento da China paralelamente aos princípios ocidentais, de fato convida essa reflexão. Além do mais, a frase deveria realçar a trajetória de Qiao Qiao, mas o que faz é o exato oposto: reforça a robotização e dessensibilização da personagem, a partir do meio de comunicação escolhido (mensagens em SMS) ou do instrumento com se protege de um assalto. Tenho consciência de que a trilha sonora e mesmo a imagética existem para complementar a formulação de sentido de uma personagem que opta por não verbalizar o que sente. Entretanto, o que me pareceu foi somente a frieza do processo de análise e processamento das imagens, e não a emoção que pretendiam revelar.

Pode ser uma questão cultural pelo fato de eu não ser asiático? Pode ser, e se isto definir a crítica, então seja assim. O fato é que, quando Qiao Qiao encontra um robô de supermercado, já não sabia se era o robô que procurava interpretar a emoção humana escondida detrás da máscara para Covid-19 ou se era uma humana que havia encontrado um igual que somente reagia, de uma maneira algorítmica, ao mundo exterior. 

Talvez Jia Zhang-ke, no período de 21 anos que compreende as imagens de arquivo do canto em uníssono de mulheres à verbalização de Qiao Qiao, tenha procurado demonstrar a desumanização humana pela dessensibilização e robotização através da evolução tecnológica e comunicacional, e o resultado foi uma obra intelectual, mas frígida, que admiro, ainda que não sinta.

Crítica publicada durante a cobertura do 77º Festival de Cannes.

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