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Dois Irmãos – Uma Jornada Fantástica

Dois Irmãos - Uma Jornada Fantástica

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Meu pai nos deixou antes de eu complementar 6 anos. Minhas memórias são fragmentos, nos quais mal consigo encaixar seu rosto, e também abstrações, preenchidas com sentimentos fabricados por relatos maternos. Meu pai passou a ser minha mãe e meus irmãos, todos mais velhos, revezaram-se para preencher tantas facetas paternas quanto poderiam. Nada me faltou, é verdade, apesar de a inadequação e a incompletude permanecerem como indicativo do “E se?”. E se meu pai não tivesse ido tão cedo, que homem eu seria hoje? E se eu pudesse passar um dia com ele, o que estaria disposto a arriscar? Nem preciso dizer que “Dois Irmãos – Uma Jornada Fantástica”, a nova animação da equipe criativa da Pixar, me acertou em cheio.

Escrito por Jason Headley (do inédito “A Bad Idea Gone Wrong”), Keith Bunin (do terror “Amaldiçoado”, com Daniel Radcliffe) e Dan Scanlon (de “Universidade Monstros”), também diretor, o roteiro apresenta ao espectador um mundo fantástico em que a magia está extinta e a família élfica Lightfoot habita um subúrbio típico norte-americano, onde nada acontece. Ian, o caçula, está no ensino médio aprendendo a se relacionar consigo e com os outros, ao mesmo tempo em que se lamenta por não haver tido a oportunidade de conhecer o pai. Já seu irmão mais velho, Barley, concluiu os estudos, embora não tenha conseguido firmar-se como um membro produtivo do mercado de trabalho. Pelo contrário, age com uma imatura intensidade, enquanto decora as informações nas cartas de RPG, um conceito curiosamente autorreferente na narrativa. Na data em que Ian completa a maioridade, sua mãe, Laurel, presenteia-o com o cajado mágico deixado pelo pai acompanhado das instruções para executar um feitiço que lhe daria a oportunidade de passar um dia em sua companhia.

Entretanto, mal executado, o feitiço termina por conjurar o pai apenas pela metade, da cintura para baixo (em uma homenagem à comédia “Um Morto Muito Louco”). Convenientemente, uma das memórias de Barley era a batucada que dava nos pés do pai, o que permite que este identifique ambos os filhos. Para concluir o feitiço antes do por do sol – prazo temporal que estabelece a “bomba relógio” da trama –, Ian e Barley embarcam numa aventura em busca da pedra mágica, dotada de múltiplas intepretações relacionadas ao mundo contemporâneo, caracterizado pela interconectividade a todo momento, ainda que, tragicamente, implique na desconexão uns dos outros. Enquanto isto, tendo descoberto qual a intenção dos filhos e a maldição que lhes aguarda, Laurel também empreende sua própria jornada fantástica, aliando-se à mitológica Mantícora, outra que precisa desesperadamente de magia em sua vida.

No formato típico do road movie, a narrativa privilegia, acertadamente, a caminhada no lugar do desfecho, permitindo que, por meio daquela, Ian e Barley estreitem os laços estremecidos não por um fato particular, mas apenas porque os caminhos da vida eventualmente propiciam este afastamento. Justo, portanto, que seja a estrada que os reaproxime e retira as traves que impedem Ian de enxergar qual o papel de Barley em sua vida. Dentro deste contexto, o diretor Dan Scanlon empunha uma faca de dois gumes: de um lado, impede que o universo fantástico caminhe de encontro à reconstrução da fraternidade entre irmãos, ao tornar a ação e todos os eventos por que passam em meios, não fins, para o desenvolvimento emocional da trama. Por outro lado, o estúdio de “Divertida Mente” ou “Viva! – A Vida é uma Festa” desperdiçou a chance de estabelecer um design de produção memorável. Chegou a enganar que o faria, ao revelar os arranha-céus no pano de fundo da metrópole como a mescla de Nova York e a Terra Média ou as casas do subúrbio como se saídas da Vila dos Smurfs.

A intenção parou por aí. Os cenários remetem mais ao realismo do que ao fantástico, e, apesar de ser possível entender a razão desta decisão criativa – qual a melhor forma de retratar a extinção da magia do que revelar um mundo igual ao nosso? –, o resultado não empolga. Pior, o visual das criaturas mágicas está no meio termo, às vezes acertando (as fadas motoqueiras ou na concepção da criatura vista no clímax), noutras errando (Laurel parece a Tristeza se esta tivesse filhos e orelhas pontiagudas). E, enquanto “Shrek 2”, mais de uma década atrás, introduziu, sem alarde, uma personagem transexual (Doris), a Pixar/Disney ainda mete os pés pelas mãos em matéria de representatividade. Não bastasse a menção à homossexualidade de uma coadjuvante ser feita através de um diálogo pavorosamente expositivo, há de se indagar se a melhor maneira de introduzir um personagem LGBTQ seria com uma ciclope com chifres na cabeça. Um monstro, não dentro do contexto da narrativa, evidentemente, mas aos olhos de quem assiste.

Mesmo que tenha um visual desinteressante, o que não quer dizer que a animação não seja caprichosa e detalhista como é a marca registrada da Pixar, a narrativa revela uma integridade raríssima não apenas dentro das animações – técnica cujo público-alvo é, ainda, infanto-juvenil – mas dentro de um leque mais amplo. Ao rejeitar, no terceiro ato, soluções simplistas, ainda que tivesse os meios para introduzi-las sem trapacear, a narrativa revela confiar na capacidade do espectador de enxergar que o caminho tomado é o que, mais honestamente, completaria a jornada não somente de Ian, mas de Barley e Laurel. É como se “Dois Irmãos” decidisse sair da rodovia e dirigir pelo percurso acidentado, cujos altos e baixos emocionais proporcionam as recompensas que seriam inexistentes caso seguíssemos a estrada óbvia da mesmice.

É que a magia significa aventura e fraternidade tanto quanto individualidade. E, sim, seria um homem diferente caso meu pai ainda estivesse junto ao meu lado, mas sua ausência ajudou a moldar quem eu sou hoje em dia e, acredito, se este pudesse me visitar por um dia, teria um orgulho tremendo de quem eu me tornei em função daqueles que assumiram, sem pestanejar, seu papel.

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