O cinema de ação deve ter sido, após as animações, uma das primeiras portas para a cinefilia para homens da minha idade (33). Clássicos dos anos 80 com brucutus hiper másculos eram reprisados na Sessão da Tarde e em outras exibições da grade de programação. Jean Claude Van Damme, Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger eram só alguns nomes conhecidos dos blockbusters de “tiro, porrada e bomba”. Apesar de seus roteiros mais rasos – e, em alguns casos analisados de forma rasa – eram filmes que reuniam a família em frente à televisão. Os exageros envolvendo a força física, armas de grande calibre, proeza em artes marciais, explosões cinematográficas e escapismo de situações absurdas faziam brilhar os olhos de um menino gordinho do subúrbio carioca nos anos 90/2000. Isso por si só já traz um apelo nostálgico à retomada desse cinema de ação que ora é subestimado pela crítica especializada, ora é demasiadamente desgastado em franquias e filmes de heróis.
O Dublê (Fall Guy) reverencia não apenas o cinema de ação, mas o fazer cinema. Não penas por revelar a magia do cinema sendo feita, mas colocando os holofotes sobre essa figura tão importante ao gênero: o dublê. Por colocar suas vidas em risco para produzir sequências que hipnotizam o olhar, esses artistas são engrenagens essenciais da máquina de sonhos que é a indústria cinematográfica. Será que Schwarza ainda estaria entre nós se Peter Kent não estivesse lá para realizar as acrobacias em O Predador ou em O Exterminador do Futuro 2? O próprio Stallone já declarou que coleciona diversas lesões por dispensar dublês nas filmagens de Rocky, Rambo e Os Mercenários. Tomadas perigosas é o que não faltam no currículo de Colt Seavers (Ryan Gosling, que já interpretou um dublê em Drive). Um dos mais cotados dublês de ação que aceita volta à ativa após um acidente para resgatar a estrela do filme de sua amada e garantir que as filmagens se concluam.
Ainda que se inspire na série de Tv oitentista Duro na Queda, o filme cria uma identidade própria e autoconsciente pela direção de David Leitch (Trem Bala), um ex-dublê. As sequências do filme prendem nossa atenção pelo dinamismo da montagem e também pelas escolhas de enquadramento que reforçam os nervos exaltados pela adrenalina ao mesmo tempo que revelam como o processo das cenas é feito. O assistir à filmagem do filme fictício nos proporciona acompanhar o olhar dos envolvidos no set de filmagem ao mesmo tempo que nos transporta o mais perto possível do protagonista. É emocionante os cortes que condensam na mesma sequência planos aéreos, planos detalhes da frente do carro se aproximando da câmera e do olhar frio de Colt exercendo seu ofício. A coreografia das cenas de luta também merecem destaque. A expertise de Leitch na execução delas é exaltada principalmente sob luzes neon a la John Wick na sequência da boate. Mas dessa vez com um acréscimo de paródia e alucinógenos que deixam clara a diferenciação entre as propostas dos dois filmes.
A comicidade é um elemento constante dentro da narrativa. E em alguns casos a o riso resolve tomar para si as atenções durante o filme, fazendo dele um híbrido de ação e comédia. Não que isso fosse inédito. Buster Keaton já combinava os dois gêneros há quase cem anos atrás com longas como A General. Do outro lado do mundo, Jackie Chan nos fazia rir enquanto nos impressionava com suas acrobacias e kung fu (eu mesmo tentei reproduzir, aos seis anos de idade, seu treinamento em O Mestre Invencível. Me pendurei no suporte de toalhas do banheiro para imitar os movimentos do astro. O resultado: o suporte caiu levando consigo o azulejo, e eu ganhei uns dias de molho com gesso na perna e uma sequência inesquecível de chineladas). O problema da comédia em O Dublê é quando ela pesa a mão como em um filme de herói da Marvel. Em uma cena específica em que uma piada envolvendo a quebra de expectativa é repetida. Além de esvaziar de vez a graça da encenação anterior, ela rompe com o ritmo do filme que se propõem a ser quase sempre acelerado. Se o alívio cômico sempre foi bem-vindo, aqui algumas vezes nos alivia quando sai de cena.
Se a piada desafina, o que é certeira é a trilha sonora. O Dublê já nos embala desde sua abertura com I Was Made for Lovin You, do KISS (minha banda favorita desde a infância e já falei isso na crítica de A Era de Ouro). As batidas e riffs ditam alguns cortes e impulsiona nossa expectativa para a próxima proeza de Colt. Clubismos à parte, não consigo imaginar outra música como tema do filme, pois, além de tudo, ela ainda comunica com a era de ouro do cinema de ação e todo o glow de luzes e pirotecnia que o filme e os shows da banda possuem em comum. Mas nem só de KISS se sustenta essa trilha musical. Para os rockistas, temos a participação de Thunderstruck, do AC/DC. E ainda contamos com duas fora da curva que se destacam: All To Well, da Taylor Swift e Against All Odds (Take a Look at Me Now), cantada pela própria Emily Blunt.
O elenco, no geral, está no seu melhor. Ryan Gosling já exibia sua veia cômica muito antes de ser apenas o Ken, de Barbie. O ator já mostrava seu talento em comédias de ação dividindo tela com Russel Crowe em Dois Caras Legais. Em O Dublê, ele usa ironicamente a inexpressividade facial que imprimiu em Drive, salvo nos momentos em que Colt é arremessado ou apanha de um capanga. Aaron Taylor-Johnson (KickAss) também está cirúrgico como o narcisista superstar Tom Ryder (uma referência a Tom Cruise, o astro de ação que dispensa dublês, ou apenas vozes da minha cabeça?), além de Hanna Waddingham (Ted Lasso), Stephanie Hsu (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo) e Winston Duke (Pantera Negra). Apenas Emily, como a diretora do filme fictício e par romântico de Gosling, que deixa um pouco a desejar. Não pela capacidade da atriz, mas pela falta de desenvolvimento de sua personagem que mais parece se limitar a reproduzir uma idealização masculina sobre mulheres nerds-cinéfilas.
Apesar de sua trama ser simples e, para alguns até previsível, o objetivo de O Dublê não é surpreender com um plot twist ao final do filme. Mas entreter enquanto acompanhamos a cruzada de Colt para reconquistar sua amada. Talvez O Dublê traga a mais árdua invertida de ghosting desde Chuck e Blair, em Gossip Girl (nem só de pancadaria vive um homem). Novamente, a forma com que Leitch comanda as sequências de ação, desde a encenação de lutas às sobre veículos, são hipnotizantes. Além disso, é possível sentir a inspiração de algumas delas em outras produções que marcaram o imaginário dos fãs do gênero, como é o caso de Mad Max, Máquina Mortífera, Miami Vice, Indiana Jones e o já citado John Wick. Se somos entorpecidos pela adrenalina, uma hora também sentimos a saturação de seu efeito. Já por volta dos 100 minutos de filme, sentimos que o filme poderia ser concluído. Afinal, os planos dos antagonistas já havia sido frustrado. Mas ao invés de fechar o filme nos deixando em estado de êxtase, a narrativa e prolonga para exibir mais uma cena de ação. Afinal, um helicóptero é visto nas extremidades do quadro em diversos momentos do et de filmagens. Como uma arma de Chekhov que se manteve em cena, ela precisa ser disparada. E, é claro que teríamos mais uma pancadaria, mas agora nas alturas.
Ainda que seus alívios cômicos se repitam, ou a duração se estique para mais uma sequência de ação que poderia ser descartada, o filme é bem divertido! Podemos fazer o mesmo sinal que Colt como quando sobrevive a um take arriscado. Para os fãs de bastidores, o filme revela os truques de mágica, desde as explosões e arremessos até a textura da imagem capturada. E, novamente, dá protagonismo à figura que sempre esteve às sombras dos grandes astros. Se a sequência final traz uma sensação de “já me diverti, agora me deixa ir pra casa”, assistir ao filme nos cinemas amplifica a experiência positivamente. Com certeza a tela grande e o som da sala de cinema tornam tudo ainda mais imersivo. Sendo assim, O Dublê acaba ganhando metade da quarta estrela, ou vai um pouco além de um filme “joinha”.
O Dublê está em exibição nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.